4. A existência de Margarida
Chegados aqui apetece perguntar se Margarida poderia, de facto, existir,
quer dizer, se poderia corresponder a um determinado tipo nado e criado na
Horta coetânea da obra. E a resposta é, obviamente, negativa, ainda que se
convoque, como contraprova, a forte correlação entre a personagem e o próprio autor.
Mas a César o que é de César e à literatura o que pertence ao ficcional.
Certo! Temos exemplos da história literária em que a personagem e o seu
criador constituem dois seres mais ou menos hipostasiados, mas quer se queira
quer não, Emma Bovary não é Gustave Flaubert e o escritor jamais se poderá
confundir com uma construção fictícia [Emma], ou, como dizia Roland Barthes, um ser de papel. uma, faz parte de uma
operação de textualização e outra é um ser em carne e osso que consta do registo
civil. Em todo o caso, já seria perfeitamente legítimo interrogarmo-nos se
Margarida é uma personagem verosímil, a exemplo de uma Princesa de Clèves [Genette,
1968: 5] que, em pleno século XVII, entendia atribuir ao seu próprio marido o
importante papel de confidente. E a resposta, colocada nestes termos, já carece
de um pequeno excurso, porquanto essa personagem, verosimilmente, poderia ter
existido, mas teria por certo rumado a outras paragens – fosse Londres, Lisboa
ou Paris. Bastava esperar que o mau tempo no canal passasse. A exemplo, aliás,
de Vitorino Nemésio. De Almeida Garrett. E de tantos outros. Significa isto
que, nos termos e nos moldes em que vemos Margarida evoluir – e involuir – no Faial,
essa rapariga não pode ter existido, como a Princesa de Clèves não poderia, no seu tempo, contar com o marido para o exercício de confidente, porquanto esse papel funcional outorgar-lhe-ia o acesso à verdade, ou seja, por este viés, o Príncipe de Clêves ficaria a
saber que a sua mulher ama o duque de Nemours. Enfim, como não existe a suposta ilha a norte da Terceira que
Fernão Dulmo teria descoberto [pp. 244/5]. Digamos que são histórias de um
mundo outro, aquele que pertence, por direito, à instância narradora. É que não
é verosímil, isto é, não se representa como plausível que uma personagem falhe todos
os scripts associados ao seu projeto
de vida e ao seu devir existencial. E, em boa verdade, Margarida falha em toda a linha: a sua
vida em sociedade, o seu desejo de fuga, a sua visão onírica, a sua vida
íntima, e, pior do que isso, não consegue manter-se fiel a si própria. Em suma,
Margarida não é um modelo, mas, antes, o seu negativo: em vez de desabrochar,
fecha-se sobre si própria; em vez que se revoltar contra o seu destino, aceita os
factos e os acontecimentos de forma mais ou menos passiva e resignada; em vez
de lutar pelos seus sonhos de juventude, abraça sem contestação a ataraxia e a
indiferença. Claro que, num determinado momento, poder-se-ia pensar que estamos
perante um caso paradigmático do bovarysmo, esta doença neurasténica que
consiste num permanente estado de insatisfação afetivo e social, mas também aqui
se encontra uma falha do script
subjacente ao todo programático, pois que, na esteira do que acaba de ser dito,
Margarida, doente, tal como Emma Bovary, deveria, pelo menos em termos lógicos,
eliminar a priori a hipótese do
casamento, cuja configuração semântica surge ideologicamente marcada como um
espaço de clausura, de prisão, de fechamento sobre si própria, ou seja, tudo o
contrário do bovarysmo, que se caracteriza pelo desejo do longínquo, pela
ambição vã e desmesurada, pela atração do imaginário romanesco e romântico. Todavia,
tal não é o caso, pois que Margarida se casa, e, com esta atitude, adensa-se a
complexidade da personagem, porquanto ela prova ser capaz de trocar os grandes movimentos
da alma pelas pequenas coisas do quotidiano ou, em último recurso, por aquelas
que se afiguram mais prosaicas e utilitárias, como parece ter sido o caso [1].
Mas mais do que isso. Com o casamento, Margarida nega o script tão caro ao bovarysmo, colocando-o justamente ao invés: a Emma, na realidade, pretende sair do matrimónio para dar largas ao devaneio e
à quimera, ao passo que Margarida traça um percurso diametralmente oposto, pois que vai
paulatinamente declinando as suas construções imaginárias, como por exemplo, a
sua eventual realização profissional em Inglaterra, para, deste modo, se
enclausurar no tédio e na frustração da sua existência..
[1] Com efeito, é através do seu
casamento com André Barreto assegura a continuidade das empresas da família.
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