2017/11/02

Mau Tempo no Canal - Uma falha generalizada do script [Margarida]

4. A existência de Margarida

     Chegados aqui apetece perguntar se Margarida poderia, de facto, existir, quer dizer, se poderia corresponder a um determinado tipo nado e criado na Horta coetânea da obra. E a resposta é, obviamente, negativa, ainda que se convoque, como contraprova, a forte correlação entre a personagem e o próprio autor. Mas a César o que é de César e à literatura o que pertence ao ficcional.
     Certo! Temos exemplos da história literária em que a personagem e o seu criador constituem dois seres mais ou menos hipostasiados, mas quer se queira quer não, Emma Bovary não é Gustave Flaubert e o escritor jamais se poderá confundir com uma construção fictícia [Emma], ou, como dizia Roland Barthes, um ser de papel. uma, faz parte de uma operação de textualização e outra é um ser em carne e osso que consta do registo civil. Em todo o caso, já seria perfeitamente legítimo interrogarmo-nos se Margarida é uma personagem verosímil, a exemplo de uma Princesa de Clèves [Genette, 1968: 5] que, em pleno século XVII, entendia atribuir ao seu próprio marido o importante papel de confidente. E a resposta, colocada nestes termos, já carece de um pequeno excurso, porquanto essa personagem, verosimilmente, poderia ter existido, mas teria por certo rumado a outras paragens – fosse Londres, Lisboa ou Paris. Bastava esperar que o mau tempo no canal passasse. A exemplo, aliás, de Vitorino Nemésio. De Almeida Garrett. E de tantos outros. Significa isto que, nos termos e nos moldes em que vemos Margarida evoluir – e involuir – no Faial, essa rapariga não pode ter existido, como a Princesa de Clèves não poderia, no seu tempo, contar com o marido para o exercício de confidente, porquanto esse papel funcional outorgar-lhe-ia o acesso à verdade, ou seja, por este viés, o Príncipe de Clêves ficaria a saber que a sua mulher ama o duque de Nemours. Enfim, como não existe a suposta ilha a norte da Terceira que Fernão Dulmo teria descoberto [pp. 244/5]. Digamos que são histórias de um mundo outro, aquele que pertence, por direito, à instância narradora. É que não é verosímil, isto é, não se representa como plausível que uma personagem falhe todos os scripts associados ao seu projeto de vida e ao seu devir existencial. E, em boa verdade, Margarida falha em toda a linha: a sua vida em sociedade, o seu desejo de fuga, a sua visão onírica, a sua vida íntima, e, pior do que isso, não consegue manter-se fiel a si própria. Em suma, Margarida não é um modelo, mas, antes, o seu negativo: em vez de desabrochar, fecha-se sobre si própria; em vez que se revoltar contra o seu destino, aceita os factos e os acontecimentos de forma mais ou menos passiva e resignada; em vez de lutar pelos seus sonhos de juventude, abraça sem contestação a ataraxia e a indiferença. Claro que, num determinado momento, poder-se-ia pensar que estamos perante um caso paradigmático do bovarysmo, esta doença neurasténica que consiste num permanente estado de insatisfação afetivo e social, mas também aqui se encontra uma falha do script subjacente ao todo programático, pois que, na esteira do que acaba de ser dito, Margarida, doente, tal como Emma Bovary, deveria, pelo menos em termos lógicos, eliminar a priori a hipótese do casamento, cuja configuração semântica surge ideologicamente marcada como um espaço de clausura, de prisão, de fechamento sobre si própria, ou seja, tudo o contrário do bovarysmo, que se caracteriza pelo desejo do longínquo, pela ambição vã e desmesurada, pela atração do imaginário romanesco e romântico. Todavia, tal não é o caso, pois que Margarida se casa, e, com esta atitude, adensa-se a complexidade da personagem, porquanto ela prova ser capaz de trocar os grandes movimentos da alma pelas pequenas coisas do quotidiano ou, em último recurso, por aquelas que se afiguram mais prosaicas e utilitárias, como parece ter sido o caso [1]. Mas mais do que isso. Com o casamento, Margarida nega o script tão caro ao bovarysmo, colocando-o justamente ao invés: a Emma, na realidade, pretende sair do matrimónio para dar largas ao devaneio e à quimera, ao passo que Margarida traça um percurso diametralmente oposto, pois que vai paulatinamente declinando as suas construções imaginárias, como por exemplo, a sua eventual realização profissional em Inglaterra, para, deste modo, se enclausurar no tédio e na frustração da sua existência.. 




[1] Com efeito, é através do seu casamento com André Barreto assegura a continuidade das empresas da família.

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