2017/11/02

Mau Tempo no Canal - Uma falha generalizada do script [o narrador]

6. O narrador


O que se acabou de dizer na secção anterior [cf. o título] ajuda, em certa medida, a melhor compreender a urdidura da própria operação de textualização do dito, cujo devir é, neste caso, superiormente dominada por um narrador que, de toda a evidência, não é de confiança. Claro que não há narradores de confiança, neste sentido que cada um, a seu modo, tenta esconder do seu leitor os fios que, na retaguarda, fazem mover as marionetas e os cordelinhos da trama diegética, mas aqui deparamo-nos com uma particularidade acrescida: é que o narrador de Mau Tempo no Canal não se compadece, em caso algum, do leitor, porquanto não se lhe vislumbra uma fímbria que seja de uma estratégia supostamente justificativa. Quer dizer, o pacto com o leitor é de tal modo subtil que parece, à primeira vista nem existir. Perceba-se porquê. Trata-se de um narrador impiedoso, cuja imparcialidade e economia de esforços não se compadecem com o estado de espírito do leitor. Trata-se de um este narrador objetivo, isto é, de um narrador de terceira pessoa - ora omnisciente, ora não - que entende, a cada passo, posicionar-se como um mero observador do tempo, dos lugares, das condições climatéricas adversas, ao mesmo tempo que perscruta atentamente os indícios precursores da alteridade. E é através desta comunhão de interesses que o leitor sente a sua presença mais ou menos empática. Mas não só. O narrador de Mau Tempo no Canal dá amplas provas de uma memória mais ou menos imediata ou remota do passado insular, como por exemplo, quando convida o leitor, sob o modo descritivo, a abrir alas à sua imaginação [Era um volume desirmanado do Arquivo dos Açores. Trazia uma série de documentos relativos ao século XVI, sobre sismos e erupções vulcânicas: um excerto de Gaspar Frutuoso acerca do terremoto de Vila Franca, o passo da Miscelânia de Garcia de Resende relativo à catástrofe e, enfim, o Romance que se fez de algumas mágoas, e perdas que causou o tremor de Vila Franca do Campo em 1522. (p. 276)].

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