6. O narrador
O que se acabou
de dizer na secção anterior [cf. o título] ajuda, em certa medida, a melhor compreender a
urdidura da própria operação de textualização do dito, cujo devir é, neste
caso, superiormente dominada por um narrador que, de toda a evidência, não é de
confiança. Claro que não há narradores de confiança, neste sentido que cada um, a seu modo, tenta esconder do seu leitor os fios que, na retaguarda, fazem mover
as marionetas e os cordelinhos da trama diegética, mas aqui deparamo-nos com uma particularidade acrescida: é que o
narrador de Mau Tempo no Canal
não se compadece, em caso algum, do leitor, porquanto não se lhe vislumbra uma
fímbria que seja de uma estratégia supostamente justificativa. Quer dizer, o pacto com o leitor é de tal modo subtil que parece, à primeira vista nem existir. Perceba-se porquê. Trata-se de um narrador impiedoso, cuja imparcialidade e economia de esforços
não se compadecem com o estado de espírito do leitor. Trata-se de um este narrador objetivo, isto é, de um narrador de terceira pessoa - ora omnisciente, ora não - que entende, a cada passo, posicionar-se como um mero observador do tempo, dos lugares, das
condições climatéricas adversas, ao mesmo tempo que perscruta atentamente os indícios
precursores da alteridade. E é através desta comunhão de interesses que o leitor sente a sua
presença mais ou menos empática. Mas não só. O narrador de Mau Tempo no Canal dá amplas provas de uma memória mais ou
menos imediata ou remota do passado insular, como por exemplo, quando convida o
leitor, sob o modo descritivo, a abrir alas à sua imaginação [Era um volume desirmanado do Arquivo dos
Açores. Trazia uma série de documentos relativos ao século XVI, sobre sismos e
erupções vulcânicas: um excerto de Gaspar Frutuoso acerca do terremoto de Vila
Franca, o passo da Miscelânia de Garcia de Resende relativo à catástrofe e,
enfim, o Romance que se fez de algumas mágoas, e perdas que causou o tremor de
Vila Franca do Campo em 1522. (p. 276)].
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