2017/11/02

Mau Tempo no Canal - Uma falha generalizada do script [o título]

5. O título

Antes de mais, interrogo-me seriamente se, tendo em conta a importância dada pelo narrador a Margarida, e, mais do que isso, levando em linha de conta os múltiplos processos de identificação entre o narrador e a personagem, interrogo-me, dizia, se o livro não poderia muito bem ostentar o nome da personagem, sem que, com isso, se perdesse a hermenêutica subjacente ao título. É que, em boa verdade, o título Margarida consubstanciaria muito mais, a meu ver, a osmose entre as duas entidades literárias e potenciaria, por certo, a dimensão intencionalmente disruptiva da obra, pois que Mau Tempo no Canal é, bem vistas as coisas, um dos poucos elos que recoloca o todo ficcional numa lógica interna coerente e que, afinal de contas, acaba por inscrever a obra num mundo possível, e, destarte, inscrito no hic et nunc. Mas não só. Mau Tempo no Canal constitui também uma das poucas formas de emprestar à trama ficcional, não apenas uma certa dimensão prosaica, mas também – e sobretudo – uma certa verosimilhança, cujos pressupostos teoréticos constituem parte absolutamente integrante da literatura romanesca, pois, caso contrário, cairíamos na ficção científica, lá onde justamente todos os mundos são possíveis, inclusive, os mais inverosímeis e estranhos [grotescos].
Claro que o Canal transporta consigo a noção do espaço e de insularidade, no acaso em apreço, a exiguidade e a clausura que os mesmos encerram, assim como englobará, por certo, a labuta, as dificuldades do quotidiano, as angústias perante o abismo das águas compactas; do mesmo modo, perder-se-ia a conceção do tempo, não o cronológico, nem o intangível, mas o tempo solar, o temo climatérico, aquele que comunica com a a vida dos homens, com as suas atividades, com as suas incertezas, em suma, esfumar-se-ia o tempo que tem malha a partir com os jogos da vida e da morte.      
Em todo o caso, parece-me que o título, pela sua realidade tangível e concreta, anula as despesas de uma narrativização, que, pela sucessiva anulação das expectativas, pelo complexo emaranhado de projetos, de anseios, de desejos, de sonhos e de aspirações votadas ao fracasso, e, como tal, inconsequentes, surge como predominantemente disruptiva e estranha ao mundo real, tal como Margarida, que, na opinião de Damião Serpa, às vezes nem parece ser deste mundo… [p. 342].


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