1. A escolha do palco
A escolha da
Horta, espécie de arquibancada virada, não apenas para o ponto mais alto do
território português, mas também para as outras ilhas do Grupo Central, parece,
numa primeira leitura, prenúncio de dolce
bella vita, isto é, surge-nos, em primeira instância, como um lugar
privilegiado de onde se assistirá a um contínuo espetáculo [palco de todo ano [1]].
Mas que espetáculo será esse, neste topoï
só comparável à montanha do Olimpo? Tratar-se-á de uma espécie de passerelle, por onde desfilará todo um cortejo
de vaidades, de festas e de tolices [2],
a exemplo do que perpassa pelo Real Clube Faialense? Ou poder-se-á aventar, de
forma porventura mais abrangente e universal, que o espetáculo, esse,
consistirá, antes, numa permanente reestruturação dos elementos naturais, a
saber, as sempiternas struggles entre
a terra, a água, o fogo e o ar?
Nem uma coisa,
nem outra, convenhamos. O palco é a Horta – como poderia ter sido o Monte
Brasil ou a própria montanha do Pico – e o espetáculo, esse, vai ser feito de
nuvens, da alteridade do mar, de nevoeiros [que mais parecem fumarolas] e de
mormaço, cujos elementos se incrustam no próprio devir das personagens,
subvertendo o script romanesco.
Contudo, a Horta, aberta ao mundo insular, não parece convir ao temperamento
evasivo de Margarida, ou, dito noutro termos, a cidade faialense, pela sua posição
geoestratégica, parece naturalmente iludir o isolamento, o recato, o
entrincheiramento – o que não se coaduna, de todo, com o feitio da
protagonista, pois que Margarida, personagem ambivalente na fase inicial da sua
vida, se vai paulatinamente fechando sobre si mesma, ao ponto de ficar refém
das leis e dos costumes da terra.
Por conseguinte,
o lugar escolhido para o desenvolvimento da diegese, contrariamente ao que se
poderia pensar, não contém qualquer eufórico, mas surge, antes, como um espaço
de incerteza, de angústia, de tensões e de opressão – em suma, um espaço
disruptivo. Do mesmo modo, o Canal, prolongamento cenográfico do epicentro
diegético, também não parece estabelecer a ponte, pelo menos no plano
simbólico, com o exterior e com o próximo, mas, bem pelo contrário, emerge como
espaço de separação e de frustração, pois que, no momento supremo, quer dizer,
quando se aproxima a resolução, se fecha sobre Margarida, ainda que por motivos
naturais, impossibilitando-a de atingir os seus objetivos imediatos. Em boa
verdade, a conjugação de forças naturais [porquanto as tempestades são
efetivamente fenómenos naturais] impossibilitam o regresso de Margarida ao Faial,
ainda a tempo de poder ver Roberto moribundo.
Claro que esta
aparente naturalidade, sobretudo tendo em conta o imaginário ilhéu, cujos
pressupostos religiosos são inseparáveis da instabilidade telúrica, não impede,
todavia, a convocação de leituras subliminares e subjetivas, as quais são suscetíveis
de colocar a questão mais ou menos dramática do destino do homem face às leis
da natureza. E, neste particular, o mau tempo no canal força Margarida a falhar
o script da despedida terrena de uma
pessoa da esfera da sua intimidade. E, à
la longue, acaba por destruir a faceta onírica da protagonista que, coma
presença de Roberto, se projetava num espaço mais ou menos longínquo e num tempo... intemporal.
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