2017/11/02

Mau Tempo no Canal - Uma falha generalizada do script [o palco]

1. A escolha do palco

A escolha da Horta, espécie de arquibancada virada, não apenas para o ponto mais alto do território português, mas também para as outras ilhas do Grupo Central, parece, numa primeira leitura, prenúncio de dolce bella vita, isto é, surge-nos, em primeira instância, como um lugar privilegiado de onde se assistirá a um contínuo espetáculo [palco de todo ano [1]]. Mas que espetáculo será esse, neste topoï só comparável à montanha do Olimpo? Tratar-se-á de uma espécie de passerelle, por onde desfilará todo um cortejo de vaidades, de festas e de tolices [2], a exemplo do que perpassa pelo Real Clube Faialense? Ou poder-se-á aventar, de forma porventura mais abrangente e universal, que o espetáculo, esse, consistirá, antes, numa permanente reestruturação dos elementos naturais, a saber, as sempiternas struggles entre a terra, a água, o fogo e o ar?
Nem uma coisa, nem outra, convenhamos. O palco é a Horta – como poderia ter sido o Monte Brasil ou a própria montanha do Pico – e o espetáculo, esse, vai ser feito de nuvens, da alteridade do mar, de nevoeiros [que mais parecem fumarolas] e de mormaço, cujos elementos se incrustam no próprio devir das personagens, subvertendo o script romanesco. Contudo, a Horta, aberta ao mundo insular, não parece convir ao temperamento evasivo de Margarida, ou, dito noutro termos, a cidade faialense, pela sua posição geoestratégica, parece naturalmente iludir o isolamento, o recato, o entrincheiramento – o que não se coaduna, de todo, com o feitio da protagonista, pois que Margarida, personagem ambivalente na fase inicial da sua vida, se vai paulatinamente fechando sobre si mesma, ao ponto de ficar refém das leis e dos costumes da terra.
Por conseguinte, o lugar escolhido para o desenvolvimento da diegese, contrariamente ao que se poderia pensar, não contém qualquer eufórico, mas surge, antes, como um espaço de incerteza, de angústia, de tensões e de opressão – em suma, um espaço disruptivo. Do mesmo modo, o Canal, prolongamento cenográfico do epicentro diegético, também não parece estabelecer a ponte, pelo menos no plano simbólico, com o exterior e com o próximo, mas, bem pelo contrário, emerge como espaço de separação e de frustração, pois que, no momento supremo, quer dizer, quando se aproxima a resolução, se fecha sobre Margarida, ainda que por motivos naturais, impossibilitando-a de atingir os seus objetivos imediatos. Em boa verdade, a conjugação de forças naturais [porquanto as tempestades são efetivamente fenómenos naturais] impossibilitam o regresso de Margarida ao Faial, ainda a tempo de poder ver Roberto moribundo.
Claro que esta aparente naturalidade, sobretudo tendo em conta o imaginário ilhéu, cujos pressupostos religiosos são inseparáveis da instabilidade telúrica, não impede, todavia, a convocação de leituras subliminares e subjetivas, as quais são suscetíveis de colocar a questão mais ou menos dramática do destino do homem face às leis da natureza. E, neste particular, o mau tempo no canal força Margarida a falhar o script da despedida terrena de uma pessoa da esfera da sua intimidade. E, à la longue, acaba por destruir a faceta onírica da protagonista que, coma presença de Roberto, se projetava num espaço mais ou menos longínquo e num tempo... intemporal.




[1] p. 47.
[2] p. 72 e p. 46.

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