2. A fase de enamoramento da
protagonista
Margarida começa
por se encontrar, de forma mais ou menos furtiva, com um mancebo da terra –
João Garcia. É certo que o moço parece bastante frouxo e pouco propenso para ação, pelo menos aquela que é
comummente aceite pela cosmovisão romântica. Mas também não é menos verdade que
Margarida infringe, como se verá, as regras programáticas previstas pelo script literário infra, cuja sequencialidade pode ser enumerada como se segue:
. [i] A
e B apaixonam-se;
. [ii]
as famílias de A e B são rivais [inimigas];
. [iii]
A e B transgridem a ordem vigente;
. [iv] as
famílias de A e/ou B mostram as suas armas, tendo em vista anular a
transgressão [o amor-paixão];
. [v] A
e/ou B rejeitam as restrições impostas, assumindo, de várias formas, a transgressão
do código preexistente;
. [vi] as
famílias de A e/ou B lutam pela reposição dos seus códigos de valores,
recorrendo à repressão;
. [vii]
A e/ou B supera[m]-se, colocando em risco a sua própria existência [parcial ou
completamente];
. [viii]
as famílias A e B conformam-se perante o desfecho [mais ou menos trágico];
. [ix] A
e/ou B aceitam o destino [morte, clausura, solidão…] como redenção.
Como se
observará, o script explanado acima é
válido para todo este esquema narrativo, divulgado à escala planetária desde a
célebre obra de William Shakespeare, mas é igualmente válido para Amor de Perdição, de Camilo Castelo
Branco, bem mais perto de nós, na exata medida em que, por exemplo:
[i]
Teresa e Simão se apaixonam;
[ii] as
famílias Albuquerque e Botelho são inimigas;
[iii]
Teresa e Simão persistem em levar por diante o seu amor-paixão;
[iv] os
Albuquerque, na circunstância, o pai [Tadeu] decide enclausurar a filha [Teresa];
[v] Teresa
e Simão rejeitam as restrições impostas, assumindo a transgressão do código de
valores preexistente;
[vi] os
Albuquerque reforçam a clausura da filha / os Botelho decidem enforcar e,
depois, deportar o filho em degredo;
[vii]
Teresa deixa de se alimentar / Simão morre de febres e de delírio [i. e.,
poeticamente, ambos morrem do mal de amor];
[viii]
Os Albuquerque e os Botelho conformam-se com o rumo das coisas;
[ix]
Teresa e Simão aceitam a morte como forma de redenção.
Ora, no que
concerne o par Margarida / João Garcia, poder-se-á mesmo questionar se terá
chegado a existir algo de semelhante ao conteúdo enunciado em [i], pois que os contactos amorosos entre
os dois se circunscrevem, em última análise, a um encontro, aliás fortuito e
furtivo, logo no primeiro capítulo e que stricto sensu não mais se repetirá. Dito por outras palavras, a relação de
intimidade entre os dois não passará de uma eterna promessa, em que os dois
promitentes A e B contribuem, cada um a seu modo, para o desengano.
Com efeito, se é
certo que João Garcia ama secretamente a rapariga [como prova o uso dos
vocativos [1]]
e que Margarida terá desejado, no seu íntimo, o resgate sentimental [2],
a verdade é que o leitor cedo se apercebe de que a relação é, à superfície, bastante
assimétrica, e, por conseguinte, votada ao fracasso, não apenas devido a
fatores idiossincráticos das duas personagens, mas também por motivos de
natureza mais ou menos exógena e circunstancial.
Face ao exposto,
parece à primeira vista óbvio que a relação amorosa Margarida / João Garcia não
é biunívoca, o que significa que o mancebo ama – ou parece amar – a pérola do Faial [p. 65], mas esta não
ama – ou parece não amar – João Garcia, como ela refere, aliás, à sua prima [3]
[p. 65]. Mas tal não é a realidade profunda: Margarida está tão apaixonada
quanto ele, tanto mais que ela nunca
tinha gostado de ninguém [p. 49], mas, ao contrário de João Garcia,
Margarida paga-se, como soe dizer-se, de palavras: é, pois, por despeito que
não responde ao seu convite velado [p. 114], é ainda por despeito que lhe
escreve, afirmando estar noiva [p.
147], sem saber ao certo de quem, é por despeito, ainda e enfim, que se casará
com o André Barreto, filho dos barões de Urzelina, mesmo percebendo de antemão
que não será feliz, porquanto comparará o seu estado civil àqueles veleiros que se deixavam apodrecer meses e
meses na Horta [p. 340] e, de resto, reconhecendo que o seu desencontro com
João Garcia se ficara a dever à sua tonsura
[p. 348], à sua castidade astral [p.
348], em suma, à sua pancada de veneta
[p. 348].
Entendamo-nos,
neste capítulo: o sentimento que, porventura, terá nutrido Margarida por João
Garcia [e vice-versa] é sui generis:
transporta consigo as marcas da sociedade do seu tempo e da sua época, carrega
o peso de uma mentalidade fechada sobre si mesmo, e, por conseguinte, não se
consegue abstrair das suas variáveis contextuais, a saber, o prestígio da
linhagem, o sucesso empresarial, as questões de personalidade. E é
exclusivamente nesta perspetiva que se pode aceitar, como elemento teleológico,
o caráter mais ou menos frouxo e
pachorrento de João Garcia, assim como se revela inócuo, neste âmbito, convocar
todo um rol de argumentos idiossincráticos, como por exemplo, o facto de o
rapaz se revelar demasiado conservador ou estoutro de ele se manifestar exageradamente
respeitador da ordem vigente, ainda que tais premissas indiciem,
aprioristicamente, alguma dificuldade em singrar numa matéria – o amor-paixão –
que, pelo seu caráter performativo e
revolucionário, exige, por certo, algum rasgo individual e uma certa ousadia [4],
embora o malogro da relação Margarida / João Garcia se fique, fundamentalmente,
a dever à pressão do meio sobre o indivíduo.
Destarte, e
tendo em conta o que ficou dito, parece legítimo validar o ponto [i] do esquema supra., ainda que sujeito a caução, porquanto a relação Margarida /
João Garcia não parece observar as premissas dos verdadeiros amantes, que,
imbuídos de um amor-paixão sem balizas, são capazes de lutar um pelo outro até
ao limite das suas forças, quando não a entregam, como é o caso de Romeu e de
Julieta, mas também de Teresa e de
Simão, numa bandeja banhada de lágrimas e de sangue. Assim, e contrariamente a
uma longa tradição, o script
explicitado supra parece ter o seu
desfecho logo no ponto [iv] – isto
admitindo que o encontro entre ambos, logo no incipit, constituiu uma transgressão à ordem preestabelecida, a
saber, a inimizade entre as duas famílias. Contudo, como se pode verificar pela
sua explicitação, a validação do referido ponto [iv] fica-se pela metade, ou seja, não se revela simétrico, pois que,
se bem que os Dulmo mostrem as suas armas, no caso vertente, a forte
admoestação física do pai sobre a sua filha, já os Garcia, em rigor, não estão
sequer em medida de aplicar qualquer medida restritiva ao filho – que, neste
capítulo, está exclusivamente entregue à sua sorte.
Ora, neste
passo, impõe-se uma análise mais fina, no sentido de se perceber quem falha, em
primeira instância, a ação programática do script.
E, numa primeira abordagem, poder-se-ia pensar que a falha do todo instrucional
é protagonizada por João Garcia, que, pretendente à mão de Margarida, teria de
afrontar o pai da amada [Diogo Dulmo] e o intruso [Roberto Clark], como fez,
por exemplo, Simão Botelho, ao assassinar o seu rival – Baltasar. Porém, as
coisas, também, aqui, devem ser matizadas, pois que João Garcia, contrariamente
a Margarida, não foi objeto de qualquer admoestação, até porque só muito mais
tarde é que Januário Garcia saberá que o filho teria uma certa inclinação pela
filha dos Dulmo – o que, diga-se de passagem, o deixa curiosamente enleado numa
espécie de alegria tola [p. 132]; já
Margarida, essa, é objeto de um violento espancamento logo no final do encontro
com João Garcia por parte do pai, que, desta forma, entende fazer separar as
águas: os Dulmo, na esteira do que acontecera com os Clark, não suportarão, em
caso algum, um eventual entendimento com os Garcia, muito menos uma eventual união
de sangue. Por conseguinte, a relação entre os dois amantes ainda mal despontara
– e a própria Margarida não tinha uma
consciência muito clara do que a unia a João Garcia [p. 47] – quando foi
abruptamente interrompida pelos golpes da verdasca
[p. 43].
Ora, muito justamente, faz parte dos cânones literários a observância deste universal segundo o
qual qualquer medida impositiva será sentida como um desafio pessoal e, como
tal, mais não fará do que atiçar ainda mais a relação amorosa. Significa isto
que o facto consiste, portanto, num processo de libertação que faz parte
integrante da natureza humana: trata-se de anular as amarras, de levantar
âncora, de reencontrar a sua própria liberdade individual, em suma, trata-se de
dar expressão suprema à afirmação da individualidade, pelo viés das suas
escolhas, da sua sensibilidade, da sua cosmovisão particular. Contudo, perante
este universal da natureza humana, Margarida responde, de forma atípica e
surpreendente, pela cega obediência à ordem vigente, enjeitando, deste modo, o
desafio, a provocação, a superação de si próprio. Os dados estão doravante
lançados: não é João Garcia que, neste passo, desmerece Margarida – é, bem pelo
contrário, Margarida que não resiste ao meio, que cede ao comezinho, que se
molda à ordem vigente, que descarta João Garcia da sua vida. Em suma, Margarida
assume, neste particular, a negação do estereótipo. A negação dos cânones. A
inversão do signo. É, pois, aí que reside a sua fraqueza. Mas também a sua
força.
[1] “amor”; “meu amor” [p. 144].
[2] “Porque não lhe dizia aquilo
mesmo na rua? […] Mas então não via os
seus passos furtivos pelos atalhos da quinta? A cadeira que deixava na varanda
com o seu cestinho de costura? Não era aquela a sua linguagem viva, o “sim” que
era preciso ir arrancar-lhe…” [p. 144].
[3] Entre mim e o João Garcia nunca houve senão camaradagem [p. 65]
[4] Claro que por detrás desta visão
crítica da obra de arte se oculta uma certa cosmovisão sexista da relação
amorosa, em que ele, o macho, deve ser o elemento empreendedor e arrebatador,
ao passo que a donzela, frágil e estulta, deve configurar o papel de presa
conquistada pela brilhantismo do pretendente – o que é dizer bastante da visão
edulcorada e romântica do todo ficcional de uma certa crítica…
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