2017/11/02

Mau Tempo no Canal - Uma falha generalizada do script [Introdução]

Um script consiste, segundo Adam (1996), numa qualquer sequência de ações mais ou menos estereotipadas. No fundo, tem que ver com um certo ato programático do género ir ao cinema, fazer compras, fazer uma viagem, etc., as quais se prendem, como se calcula, com (a) a ordem cronológica factual, (b) com as regras do mundo real e objetivo e (c) com as regras de natureza sociológica. De forma mais abrangente, poder-se-á definir um script (cf. Schank e Abelson 1977) como uma “cadeia de inferência pré-organizada de uma situação específica”, ao passo que o termo frame, no sentido que Fillmore (1982) lhe dá, deve ser entendido por um esquema de conhecimentos ou de padrões prototípicos e estereotipados, ou, ainda, hipóteses feitas pelos indivíduos a respeito do mundo ou do estado de coisas no mundo (Garcez e Ribeiro, 1987:140).

Com efeito, ir ao cinema, por exemplo, implica (i) que se saiba, de antemão, os filmes em exibição na sala, (ii) dirigir-se à bilheteira; (iii) pedir um bilhete de acesso para um determinado filme; (iv) pagar o bilhete; (v) dirigir-se para o local específico do espetáculo, (vi) sentar-se no lugar inscrito no bilhete, etc. De resto, qualquer alteração à ordem destas ações traduzir-se-á numa lógica absurda, e, em última análise, sujeitas a caução pelas regras da sociedade, pois, em boa verdade, seria, no mínimo, bastante imprudente aplicar a regra (v-vi) sem, primeiro, consumar as regras (i-iv), como seria igualmente inconsequente (ii) dirigir-se à bilheteira, sem conhecer a panóplia de filmes em exibição na sala, porquanto o título de acesso não poderá ser emitido sem a devida inscrição no hic et nunc.


Ora, à luz do que acaba de ser enunciado, parece-me que o sucesso literário do célebre romance de Vitorino Nemésio – Mau Tempo no Canal – se deve, acima de tudo, a toda uma panóplia de falhas do script originário. Quer com isto dizer que, para lá de uma falha generalizada do script típico da açorianadade, e, à la longue, do script primário do ser português, é o próprio ato de produção diegético que, de forma intencional, contribui, em grande escala, para uma lógica estranha, absurda e disruptiva dos protótipos, à exceção, como veremos, do título da obra, cuja configuração semântica não subverte o esquema de aplicação das regras do mundo real.

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