2013/06/12

Crónica de uma greve lavrada em português suave

     Falo em nome daqueles que, durante décadas a fio, andaram literalmente com a casa às costas e montaram a tenda numa povoação perto do seu sonho, qual miragem no âmago de um país desértico e assimétrico; 
     Falo em nome dos professores eternamente contratados que fizeram viagens mais ou menos lúgubres ou amargas e por amor à sua vocação de cuidar dos outros; 
     Falo em nome daqueles que se mudaram, armas e bagagens, do Minho para o Algarve ou do Continente para as Ilhas e vice-versa, sem vislumbrar, no horizonte largo, um sinal de gratidão e de carinho; 
     Falo em nome daqueles que fizeram das tripas coração para consolidarem, honestamente e de sonho em riste, os seus projetos profissionais, aspiração, aliás, legítima de todo e qualquer ser humano; 
     Falo em nome daqueles que, quantas vezes, sacrificaram os seus próprios filhos em prol dos filhos dos outros, que, nesta matéria – e refiro-me ao processo de ensino/aprendizagem stricto sensu –, a diferença será, porventura, mínima, para não dizer, inexistente; 
     Falo em nome de todos aqueles que, há décadas, andam a ser alimentados a bolachas e a bolos, estratégia aliás potenciada por um processo avaliativo iníquo e inócuo, cujo único objetivo é, admitamos ou não, retardar a progressão das respetivas carreiras, embora reconhecendo que é assim mesmo que se enganam os tolos
     Falo em nome daqueles que se aproximam dos cinquenta anos, dos que já lá chegaram e dos que lá (não) chegarão, porque a reforma lhes foge ao ritmo de uma crise que a vetusta Europa lhes impõe e que os de cá gostariam de protelar ad eternum
     Falo em nome dos extenuados, dos deprimidos, dos medicamente assistidos e dos assim-assim, que tentam construir, diariamente e no contexto/aula, um mundo mais justo e coeso; 
     Falo em nome daqueles que veem os seus salários sucessivamente reduzidos por via dos impostos, das taxas suplementares diretamente extraídas dos seus salários, dos eternos congelamentos em nome da nação e do bem-estar coletivo, estereótipos lamentavelmente apenas válidos para alguns, no caso vertente, para os mesmos de sempre - os professores; 
     Falo em nome daqueles cujo frigorífico se esvazia a cada ano letivo que passa, e, em consequência das dificuldades crescentes, se interrogam por que raio investiram numa carreira irrisória e insistentemente estigmatizada pelos vários quadrantes político-ideológicos; 
     Falo, por fim, em meu nome pessoal e abraço, com ternura e alguma amargura, os argumentos explanados supra, os quais assentam, na sua essência, nos valores da justiça, do trabalho e de honestidade, cuja matriz moral, de resto, procuro, hoje, carrear, quer em termos de currículo explícito, quer, sobretudo, em termos de currículo oculto; 
     Falo, em suma, para expurgar os meus próprios fantasmas e para cantar a minha revolta face a um país que se tornou mister na arte de dividir os meus concidadãos, consubstanciando, nesta matéria, uma nova e curiosa cultura do oportunismo, da ingratidão e do enxovalho público; 

     Dito isto, eu, Manuel Fonseca Fontão, autor deste modesto blogue, acuso-vos, políticos de pacotilha, o dedo em riste, pleno de revolta. E de sangue… 

     Acuso-vos de má-fé, porquanto não mexeis uma palha quando, todavia, vedes - claramente visto! - crianças com fome nas escolas… Oh sim! Mas que importa, se os professores zelarão pelo bem-estar da nação?; 
     Acuso-vos de má-fé quando pactuais com a vossa ASAE, muito preocupada em perceber se tal ou tal outra cantina têm o pé direito (ou torto) e se os respetivos locais possuem, algures, um buraco, nas vizinhanças… Oh claro! Mas que importa, se os professores abreviarão a situação?; 
     Acuso-vos de má-fé, pois promoveis a uniformização das ementas, verdadeiras dietas hospitalares, que só a fome que trazem de casa obrigam os pobres utentes a consumir de acordo com os vossos diplomas legais… Oh pois então! Mas que importa, se os professores se encarregarão de explicar o absurdo?; 
     Acuso-vos de má-fé, porquanto mais não fazeis que mandatar as direções das escolas para contraírem contratos à exploração, Pois! Pois! Mas que importa, se os professores se manterão fiéis ao poder instituído?; 
     Acuso-vos de má-fé, pois que forçais o encerramento de escolas por esse país afora – ou pelo país adentro, se quiserdes – sem vos preocupardes minimamente com a qualidade de vida dos alunos, que, agora, pareceis acerrimamente defender… Ah! Sim! Mas que importa tudo isso, se os professores se mostrarão submissos ao poder tutelar; 
     Acuso-vos de má-fé, tanto mais que sabeis – de saber expertamente feito – que os alunos são violentamente atirados para escolas, tipo super-esquadras versão em português suave, longe dos pais e dos restantes familiares, e, por conseguinte, colocando em risco o seu equilíbrio psicoafetivo, o seu rendimento escolar, sem terdes consciência de que, por esse viés, acabais intencionalmente por influenciar, de forma nefasta, o seu sucesso educativo, Ora ora! Mas que importa tudo isso, se os professores estarão lá, a jeito, demasiado a jeito, para arcarem com as consequências de uma política educativa desastrosa, nem que, para isso, seja necessário averbardes, nos seus cadernos de encargos, a taxa de insucesso dos seus alunos?; 
     Acuso-vos de má-fé, porquanto mais não fazeis do que desbaratar recursos, designadamente, auxiliares didáticos… e porquê? Ora, porque os programas, alegadamente, já não têm valor científico (quantas verbas, senhores, passadas por baixo da mesa das negociações!) ou porque o vulgo manual carece de certificação homologada (quantos contratos paralelos e comissões ficam, aqui, na penumbra!) ou porque o dito manual perde qualidade, tal como um cão que, por quem sois senhores, quando não gostamos, verdadeiramente, podemos sempre alegar que ele, o cão (ou o professor…) perde o pelo – e reparai, caros senhores! – se é verdade que todo o cão perde o pelo, daqui se seguirá que todo o manual perde, definitivamente, qualidade, e, vai daí, está encontrada a razão da mudança – em suma, mude-se o auxiliar didático porque sim. E, no fundo, que importa tudo isso, se os professores, sempre tão solícitos e servis, lá estarão para encontrar algumas virtualidades ao novo adotado e para enjeitar o que fora enjeitado. Que os professores, caros políticos de paróquia, eles são gente mui criativa e mui inventiva, e, como tal, encontrarão, por certo, os melhores argumentos possíveis num mundo português em tons exageradamente suaves, que se rege, apesar de tudo, por uma lógica panglossiana
     Acuso-vos de má-fé, porquanto promoveis um discurso próximo do bota-abaixismo, quando bem sabeis que os professores são, permanentemente, vilipendiados dentro e fora da sala de aulas, humilhados na praça pública, e, como se isso não bastasse, são, depois, expostos e vendidos por trinta dinheiros… Claro! Mas que importa tudo isso, se eles, os professores, estão sempre dispostos a tudo, não é?; 
     Acuso-vos de má-fé, pois sabeis, melhor do que ninguém, que é por causa da vossa incoerência discursiva, legislativa e partidária que nós, professores, sofremos a indisciplina dentro e fora do espaço/aula; que é por causa da vossa inqualificável verborreia - e por que não vos calais, homens de deus ou do diabo? - que somos constantemente desrespeitados pela opinião pública; em definitivo, que é por causa da vossa febre legisladora, aliás, pueril e histérica, que nós, professores, sofremos, na pele, a vossa própria incúria… Mas vejamos! Que importa tudo isso, se eles, os professores, são pessoas, apesar de tudo, acríticas e imbecis, não é?; 
     Acuso-vos de má-fé, porquanto insistis, ilegitimamente, em mudar, por mero capricho e ao sabor dos boletins meteorológicos, os programas, as grelhas curriculares, o rol de áreas disciplinares e as políticas educativas, quando o bom senso manda que um país a sério - e sério! - não se deveria compaginar com as vagas aspirações de um qualquer aparelho político-partidário – o vosso. Mas, caros senhores, que legitimidade, pois, para mexer na filosofia educativa de um país que, em rigor, não vos pertence, senão de forma mais ou menos interina e passageira? Que legitimidade para mexer, de forma aleatória e por mero capricho, numa área – a da educação! – que deveria ser transpartidária e responder genuinamente às aspirações de um povo? Ah! Sim! Mas que importa tudo isso, se eles, os professores, comem e calam?; 
     Acuso-vos, por conseguinte, de conduzirdes o país educativo para filosofias educativas aberrantes, e, mais do que isso, acuso-vos de danos morais aos nossos vindouros, porquanto não é líquido que eles, os futuros adultos, se revejam nos vossos interesses de sacristia, que, aliás, fedem mal, ou melhor, que tresandam, porquanto sujeitas a modas mal resolvidas, como por exemplo, o eduquês (em particular, o lurdes-rodriguês, o nuno-cratês…), imbuídas de uma lógica clientelista e de modelos empresariais…. Mas que importa, se, numa classe tão heterogénea, haverá sempre uns quantos pacóvios (com perdão dos desabusados na sua ingenuidade...) prontos a ir ao altar verter o sangue dos seus pares, não é?; 
     Acuso-vos de má-fé, pois que promoveis umas quantas ridículas ações de formação, apenas para manterdes a plateia em suspense, o corpo (docente) em plena forma, e, no fundo, para fingirdes que os cronogramas e os cronótipos constituem um pressuposto válido para a progressão das carreiras... Balelas, claro! Mas que importa tudo isso, se eles, os professores, possuem, no final de contas, um enorme poder de encaixe, quanto mais não seja pelo recurso ao ensimesmamento, não é?; 
     Acuso-vos de má-fé, porque abandonais o professor à sua (má) sorte, sem levardes em linha de conta que eles, os professores, também têm filhos, também têm família, também têm direito a uma existência que contemple condições de trabalho  razoáveis e dignas… Pois! Mas que importa tudo isso, se eles, os professores, são uns privilegiados, como por exemplo, ter direito a férias repartidas ao longo do ano e segundo as conveniências do seu núcleo familiar, como por exemplo, ter direito a participar na vida escolar dos seus próprios filhos, como por exemplo, ter o prazer de efetuar diariamente longas distâncias a custo zero, e, como se isso não bastasse, ainda usufruírem de ajudas de custo regulares, no caso em apreço, as chorudas comparticipações ministeriais destinadas, exclusivamente, ao seu alojamento, ao combustível despendido, etc. etc, a exemplo, aliás, de outras classes profissionais, igualmente privilegiadas?; 
     Acuso-vos de má-fé, porque extenuais os professores com horas vazias de conteúdo, como por exemplo, as horas de trabalho do estabelecimento, quando eles, os professores, poderiam ser mais eficazes, ao lançar mãos do trabalho solitário, como por exemplo, planificar atempadamente as suas atividades letivas para o dia seguinte (que isto de ser professor é como alimentar uma bandeja que se esvazia no dia-a-dia…), como por exemplo, elaborar fichas formativas e conceber e corrigir testes – deixados em casa por decreto e prejudicando - como convém a uma certa lógica maquiavélica! - a orgânica familiar. Pois é! Mas que importa tudo isso, se o tempo dos professores, contrariamente ao do comum dos mortais, é essencialmente elástico e psicológico, não é? E, depois, não será melhor terdes homens e mulheres incapazes de raciocinar no dia que se avizinha, não será mais proveitoso lidardes com gente, autênticos zombies, mais preocupada em disfarçar as olheiras do que vos lançar, critica e objetivamente, o ónus de uma carga de trabalho digna de fazer inveja aos modelos organizacionais terceiro-mundistas?; 
     Acuso-vos de má-fé por fingirdes que os professores só trabalham trinta e cinco horas por semana, quando todos sabem – exceto o leigo ou o (pseudo)ignorante – que eles, os professores, realizam todo um trabalho fantasmático de várias e árduas horas, que eles emprestam ao sistema - o vosso - o seu saber científico, as suas bibliotecas, as suas referências bibliográficas, os seus computadores, as suas impressoras e respetivos tinteiros, o seu papel A4, etc. etc.. Claro, senhores! Que importa tudo isso, se o trabalho aparece feito, se eles, os professores, ao regressarem a suas casas, lá encontrarão, à sua espera, as suas bibliotecas, as suas referências bibliográficas, as suas ferramentas e o papel revolto na sua revolta interior e amortecida – e, reparai, energúmenos pestilentos, que, até hoje, ainda ninguém colocou a questão essencial, a de se saber quem terá levado a cabo as múltiplas tarefas visíveis e invisíveis, dando de barato que terá sido, admitamos, uma enigmática varinha de condão a colocar, numa salva de prata, a ficha formativa pronta a consumir, o teste pronto a ser reproduzido, as classificações prontas a ser divulgadas ao grupo de trabalho, etc. etc. Mas, vejamos! Que importa tudo isso, se a coisa até parece que funciona, sem um gemido ou uma queixa, não é, meus sacaninhas imberbes e uberosos?; 
     Acuso-vos de má-fé, porquanto o trabalho intelectual não se pode medir em tempo objetivo e objetivável, a não ser que, caros senhores, vos movais numa lógica perfeitamente agrária, em que o trabalho, até então, se media, tão-só, pela órbita do sol e de enxada na mão - a que só faltará a chibata - e, aí, eles, os professores, saberiam dar valor, grandes idiotas, aos corpos calosos, tal como vós estais habituados por força das vossas calosas funções! Passemos, pois, porque, afinal de contas, que importa tudo isso, se os professores são, psicologicamente, imunes à rotação solar e ao movimento de translação, quer dizer, se eles, os professores, configuram uma espécie de eunucos 3G face à transformação do mundo?; 
     Acuso-vos, sobretudo, de denegrirdes a imagem pública dos professores (cuja estratégia visa, tão-somente, reduzir as suas legítimas expectativas); de ofenderdes, através das vossas ridículas metáforas (cf. o estar à lareira; o sair da sua zona de conforto…), a sua boa-fé, quiçá, a sua ingenuidade; de os transformardes em funcionários bu(r)rocráticos que - hélas! - esgotam as suas energias em tarefas administrativas (quantos funcionários do setor terão, entretanto, perdido os seus empregos, mercê da vossa esperteza saloia, ah?...) e de os fustigardes com uma retórica abusiva, contraditória e incoerente; de o reduzirdes a um mero transmissor de conhecimentos mais ou menos fossilizados, quando, como bem sabeis, está no seu - no nosso - ADN potenciar o seu espírito criativo (e o dos que o rodeiam...), quando está no seu código genético a incrível capacidade de (auto)satisfazerem as suas próprias necessidades de investigação e de atualização científicas, faltando-lhe apenas, para o efeito, a ratificação oficial, devidamente inscrita nos respetivos horários de trabalho, nem que para isso seja necessário colocar, sobre as suas secretárias, um tacógrafo, a exemplo dos  camionistas de grandes percursos; 
     Acuso-vos, sobretudo, de cobardia, ou melhor, de uma notória falta de tomates (com perdão pela linguagem vernácula, que, na minha terra, a expressão designa alguém que revela uma notória falha de caráter incorrigível – a cobardia…), como, aliás, se comprova pelo exército de guarda-costas que vos segue para todo ao lado, ao passo que nós, professores, somos insultados, ameaçados, e, com um bocadinho de azar à mistura, lá teremos de comprar um ou outro pneu recauchutado ou, pior ainda, pagar uma nova pintura de um qualquer painel do carro, que, na maior parte dos casos, anda a ser pago a prestações; 
     Acuso-vos, sobretudo, porque usais os alunos, segundo a circunstância do momento, quer como um mero número, quer dizer, como uma pura abstração, ou, quando importa (como é o caso...), como uma mera arma de arremesso político, quando somo nós – e é isso que, irremediavelmente, nos separa! – que privamos com ele, ou, dito noutros termos, quando somos nós que lhe damos alma e alento, pelo que, caros senhores, ficai, neste ponto, descansadíssimos, que o resultado da nossa luta não recairá, por certo, sobre eles – que nós não fugiremos a sete pés daqueles que são a nossa razão de existir – contrariamente a vós, políticos mesquinhos e execráveis, que, ao mesmo tempo que sacrificais o vosso povo, lhe fazeis ouvir, alto e bom som, que vos estais lixando (passe o vulgarismo do vocábulo, como vulgar será quem o proferiu!...) para os seus temores e anseios… 
     Acuso-vos, sobretudo e enfim, de terdes transformado a escola numa espécie de cesto dos papéis, onde caberá, por certo, sempre mais uma nova tarefa – que a sociedade enjeita e que os professores acabam por abraçar, tal é o amor que os movem pelas causas... dos outros;

   Ficai, políticos do artifício e da hipocrisia, com os vossos milhões, mas deixai-nos, definitivamente, em paz com os nossos tostões. Ficai, governantes falhados e com telhados de vidro (ou tejadilhos de artefactos submarinos...), com todas vossas benesses, com as vossas frotas, com o vosso séquito de assessores, de motoristas, de guarda-costas, mas deixai-nos (sobre)viver com os nossos magros orçamentos.    
     Ficai, artistas circenses, com o vosso espetáculo mediático, com as vossas habilidades de rua, com os vossos malabarismos, mas não nos tireis a nossa dignidade - que é, ao fim e ao cabo, aquilo que nos resta. Que mais quereis, senhores, depois de nos terdes retirado tudo, inclusive, a motivação para ensinar? A nossa alma? Ah! não! Que, essa, não está à venda. E jamais fará parte dos vossos duvidosos jogos de poder...
     Quanto ao mais, caros políticos anfíbios, sabeis bem, suponho (desculpai-me a reserva mental, mas face à vossa proverbial ignorância!...), o que, comummente, diz o pobre cometa à sedutora estrela: Ó ESTRELA!  QUERES COMETA? Para bom entendedor...   
© Manuel Fontão

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