2013/03/30

Fonologia e Fonética: conceitos e exercícios práticos

1. Introdução

Quando ouvimos alguém a falar, não vemos espaços em branco entre as palavras, nem sinais de pontuação, nem indicações de parágrafo. O que escutamos, isso sim, é uma sequência, mais ou menos contínua, de sons (cadeia sonora ou falada). Ora, essa sequência pode ser fragmentada ou segmentada em elementos (segmentos) progressivamente mais pequenos, até chegar aos sons (Fonética) ou aos fonemas (Fonologia). 


1.1. Fonética 
A fonética considera as características físicas e fisiológicas dos sons, podendo fazê-lo sob três vertentes teóricas, a saber: 

1. como são produzidos (Fonética Articulatória);
2. como são transmitidos (Fonética Acústica); 
3. como são captados ou percebidos (Fonética Perceptiva ou Auditiva).

1. Fonética articulatória 
Graças a radiografias e a vários utensílios de observação aplicados aos órgãos da fala (o aparelho fonador), é-nos, hoje, possível saber como é que eles funcionam (aliás, o aparelho fonador é, por seu turno, comandado por certas áreas cerebrais...). Entramos, assim, no domínio da Fisiologia. Ora, sendo esta uma das dimensões mais correntes da análise dos sons, esta abordagem revela-se particularmente útil, pois permite descrever que órgãos intervêm na emissão da voz, i. e., na produção de sons e fonemas. 

2. Fonética acústica
Podemos, porém, gravar as ondas sonoras na sua evolução, em espectrogramas, visualizando a sua composição, as variações que apresentam (em frequência, em intensidade). Entramos, por conseguinte, no domínio da Física.

3. Fonética Perceptiva (também designada por Fonética auditiva)
Podemos ainda analisar os sons do ponto de vista da receção, quer dizer, indagar a forma como os ouvintes distinguem o som e a forma como o categorizam. Deste modo, entramos no domínio da Psicologia experimental.

1.2. Fonologia
Em qualquer destes casos, não levamos em linha de conta a função desses sons, quer dizer, a sua capacidade distintiva, pois, nesse caso, estaríamos já no domínio da Fonologia.
Naturalmente, as três abordagens que passámos sumariamente em revista completam-se entre si, e, como é óbvio, a fonologia tira partido de umas e de outras, isolando, dentre todos os sons descritos, seja qual for o método escolhido, aqueles que têm funções distintivas numa determinada língua, assim garantindo o funcionamento da comunicação entre as pessoas. Neste caso, estamos já perante abordagens fisiológicas, físicas ou psicológicas, mas especificamente linguísticas.


1.3. Prosódia
Para além destas dimensões segmentais, a cadeia sonora (ou falada) pode ser encarada como apresentando características que estão para além desses segmentos (fonemas) e mesmo das sílabas. Assumem, por conseguinte, uma dimensão suprassegmental (ou prosódica) e revelam-se essenciais para a interpretação dos enunciados, designadamente no que toca à:

a) entoação, pois que, ao adotar um conjunto de linhas melódicas, podemos destacar um grupo (ou sintagma), relativamente a um outro ou até modificar o tipo de frase (declarativa, exclamativa, interrogativa, imperativa), alterando, mutatis mutandis, a variação semântica dos enunciados em causa;
b) a acentuação, na medida em que nos permite destacar uma certa sílaba, em detrimento de uma outra. 


1.4. Fones ou sons (Fonética) e Fonemas (Fonologia)
Fonemas e fones não são equivalentes. De facto, todos os fonemas se concretizam em fones mas nem todos traduzem fonemas, pois que estes assumem um valor distintivo, permitindo distinguir palavras em tudo idênticas.
Assim, quando dizemos bato, cato, fato, gato, mato, nato, pato, rato, etc., os fones consonânticos iniciais [b], [k] [f] [g] [m] [n] [p] [r], etc. são suficientes para nos referirmos a realidades extralinguísticas. Com efeito, ninguém confunde um gato com um rato ou cato com bato ou, ainda, fato com pato. A esses sons com valor distinto, damos o nome de fonemas e representamo-los, graficamente, entre barras oblíquas (//). Significa isto que os fonemas são, por conseguinte, entidades fonológicas e inscrevem-se, claro, no plano da língua.  
Quando os sons não distinguem palavras, encontramo-nos, então, no domínio da Fonética, cuja unidade mínima é o fone. Assim, no português corrente, normalizado, o grupo ch da palavra chave é, no Português normalizado, pronunciado como [ʃ], muito embora haja zonas do interior de Portugal em que se pronuncia [tʃ]. Ora, o facto de a palavra ser pronunciada de modo diferente não faz com que ela deixe de ter a mesma significação. Do mesmo modo, quando falamos de pão, no português corrente, pronunciamos [pɐ̃], mas, em certas zonas do país, designadamente em certas zonas do Porto, há quem diga [põw̃]. Em todo o caso, essas realizações fonéticas não têm, obviamente, qualquer valor distintivo, pois que tais unidades se situam no pano da fala, ou seja, na realização concreta da língua.
Os fones são, por conseguinte, realizações do domínio fonético e representamo-los, graficamente, entre parênteses retos ([]).


1.5. Alfabeto Internacional
Para facilitar a leitura uniforme das palavras, foi internacionalmente criado, em 1888, um alfabeto fonético, dito, Alfabeto de Fonética Internacional (AFI). É esse alfabeto que costuma acompanhar, nos dicionários bilingues, a pronúncia das palavras estrangeiras, facilitando, assim, a sua leitura.
Há, porém, realizações linguísticas características de algumas línguas ou regiões de que esse alfabeto não dá devida conta. Por isso, os linguistas dos vários países adaptaram-no à situação concreta das respetivas línguas. Assim, o grupo que liderou o chamado Dicionário da Academia, ou melhor, o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da responsabilidade do Professor Malaca Casteleiro, adotou o alfabeto fonético de que se dá devida conta noutro documento (Cf. Plataforma_AFI do Português Contemporâneo).     


2. Retroalimentação

Faça a transcrição fonética estreita da frase abaixo, tendo em conta a variante padrão:

1. “No Rossio, há casas grandes e casas pequenas.”


2. Diga quantas palavras contém cada uma das seguintes frases:

a) Ele corta a relva aos sábados e corta-a muito bem.
b) Ele comprou o corta-relvas de um primo.
c) Dir-te-ei que ele comprou o corta-relvas do primo.
d) O campeonato do corta-mato contou com equipas internacionais.


3. Das seguintes transcrições fonéticas, algumas poderiam corresponder a palavras do português, ao passo que outras não. Divida-as em dois grupos: o das palavras possíveis e o das palavras impossíveis no português contemporâneo, adiantando, relativamente ao último grupo (o das palavras impossíveis), algumas razões da sua escolha:

4. Comente criticamente o documento que se apresenta, infra, na circunstância, um certificado de pobreza, passado por um Regedor [1] minhoto em favor de Miquelina Rosa (que consta dos Serões de Província de Júlio Dinis e que pertence à novela O Espólio do Senhor Cipriano):

“Eu, Bento Maria do portal, regidor de esta freguesia atesto im como, maquilina, rosa, Martins, solteira, de esta Cidade, não tem aberes para fazer as despesas do intero do seu irmom cepreano cujo consta ter dinheiro. Mas o qué certo é que por morte se não incontrou i se é berdadeiro o dito do bulgo o debe ter, nalgum iscondrijo, que ainda se não inchergou. E por ser berdade o que Açupra, atesto e mo diserom pessoas diganas para mim de todo o creto, pacei esta que juro.

“Dada em esta Cidade a 12 de Janeiro de…

Bento Maria do portal.”


5. No tempo das guerras liberais, por ocasião do cerco do Porto, os miguelistas diziam ao ignorante e crédulo povo das aldeias que o liberal D. Pedro comia crianças assadas. E, para melhor comprovar o repugnante crime, liam mesmo, do alto do púlpito, um número da Crónica Constitucional, em cujo passo se referia que Sua Majestade comia a cada jantar um pequeno assado
Face ao exposto, comente a importância da entoação, tendo em consideração a parentetização que se segue:



6. Diga em que consiste o trocadilho fonológico presente na expressão transcrita abaixo:

– Sabes por que é que Salazar não deixou descendência?...
– Não faço a mínima [2]
– Por se ter consagrado à divisa [ɐdewʃpatrjɐifɐmiljɐ]… [3]




3. Bibliografia:
Mateus, M (2003) Gramática da Língua Portuguesa. Lisboa: Editorial Caminho
Delgado Martins, M (2005) Ouvir, Falar. Lisboa: Editorial Caminho
Chomsky N; Halle, M (1968) Sound Pattern of English. Harper and Row Publi: New York
Chomsky, N (1968) Language and Mind. Harcourt: New York 





© Manuel Fontão

[1] Taberneiro de profissão.
[2] Expressão característica do linguajar jovem do PE.
[3] A Deus, Pátria e Família /Adeus, pátria e família!...

© Manuel Fontão

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