2012/07/12

revejo-me ainda sentado

revejo-me ainda sentado
naquele extraordinário e íntimo rochedo
                                     
recordo-me como se hoje fosse
daquela ave peculiar que bem cedo
pela manhãzinha ainda imberbe e pálida
riscou de preto o verde dos prados

recordo-me de quase tudo
recordo-me por exemplo da humidade
do meu rosto dos meus olhos da minha alma
recordo ainda deus meu pai
a minha fronte cálida
a minha voz rouca
os meus membros frouxos
                                     
lembro-me também de ter
em noites longas de geada
passeado nos muros atónitos da minha peleja
as falanges partidas os dedos franzinos as mãos cansadas
                                     
lembro-me muito bem de te ter procurado como um louco
nos cruzamentos nos ermos nas naves das igrejas
por dentro da imagem dos beatos dos santos
lembro-me vagamente de ter atravessado a nado
o leito atribulado do meu desencanto

hoje estou de novo aqui
e curiosamente a rocha antiga                                   
sempre igual a si própria ainda me fala de ti
de uma maneira tão trágica tão sóbria tão real
que dessa voz sou sem querer
o exato produto

reconheço menos por dever mais por devoção
a minha alma outrora impoluta outrora branca
vestida de luto pátrio inundada pelo pranto
 
[in Palimpsestos]

© Manuel Fontão

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