2012/07/09

resolvi um dia partir para o mercado...

resolvi um dia partir para o mercado para o grande mercado do destino fi-lo com os sapatos marchetados de inocência os bolsos cheios de sonhos de menino e na alma levava um somatório de projetos sem alvará de construção

comprei a confiança dos outros ao preço da minha magra juventude quer dizer a gotas de sangue da minha consciência imberbe e foi nesta louca base de licitação que resisti de forma mais ou menos intrépida ao desabar do meu mundo de criança 

decidi um pouco mais tarde procurar alguns antídotos para saciar o desespero que me invadia o espírito em noites de terror e acabei oh desgraça minha acabei por adquirir o quinhão que me coube em sorte ao legar aos mercadores de forma sentida e gratuita o meu corpo cúmplice agrilhoado refém

comprei algures uma seira para esconder a minha intrepidez a minha inocência a minha amargura e toda aquela terrível vontade de gritar 

um pouco mais além fui compelido a abandonar as vetustas roupas de adolescente e a mudar a copiosa seira para a mão esquerda e mais além ainda arrastei bocados dos meus vinte anos trilhados pela sublime hipocrisia das palavras

recolhi numa noite de pânico e de tempestade todos os pedaços imundos da minha existência em chamas

entrei um dia depois de o sol se esconder por detrás da encosta na seira na minha seira perfurada e não havia mais nada a não ser este cheiro acerbo a humidade a não ser este cheiro terrível a uma vida estéril a não ser a não ser este horripilante sentimento de ter pago a minha candura ao alto preço da minha pena 

resolvi numa manhã de sol radiante partir para o mercado paguei os meus erros com a minha própria carne expiei a letras de sangue os pecados do meu descontentamento

ah cumpri religiosamente a sina que me estava reservada sem um gemido sem um lamento sem grande alarido 

apenas esta incapacidade de sorrir teima em me perseguir para todo o lado que eu vá

mas que importa que importa tudo isso se continuas ó bela sereia lá nos confins da cidade herética e sagrada estranhamente a tecer com fios de estranho salgueiro o meu sonho a minha cela o meu celeiro

ah nunca te pedi nada Lea nem o beijo que intrepidamente me cravaste

ao desbarato
 
[in Palimpsestos]

© Manuel Fontão

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