2012/07/11

hoje vi crianças que brincavam distraídas

hoje vi crianças que brincavam distraídas
despreocupadas Lea
no colo das suas mães inquietas e atormentadas

hoje vi animais que deixavam para trás
em correrias desenfreadas em fugas aleatórias
as marcas rubras das suas feridas
o terror das suas vivíssimas chagas
                                      
hoje vi flores desabrochadas algemadas
esmagadas em jardins ostensivamente públicos
sem alvará de plantio
sem condições de sanidade

hoje vi homens sábios loucos patéticos
lutando absurdamente pelo dia a dia
ao som estridente de canhões histéricos
                                      
hoje vi quase tudo a frios golpes de estio
vi por exemplo o brinquedo daquela criança
uma pequena e bela bola de algodão Lea
deslizar estrada fora banhado em sangue
                                      
vi também de forma clara
o crânio de uma mulher com coração de mãe
pobre criatura de sumária bonança de negro fado
rebolar no asfalto em fogo
ao ritmo lento da inclinação do solo
                                      

vi ainda a olhos vistos um cão raçudo
os nervos em franja a pele eriçada a cauda em brasa
saltar um artefacto e cair do outro lado
desfalecido inerte exangue
                                       
vi enfim aquela flor carnuda pujante
ficar de repente sem pétalas sem pé
sem qualquer contorno terra ar
                                       
ah também vi o horizonte cinzento Lea
repleto de fé e de ternura e de esperança
bradando abertamente o teu nome a tua desgraça
          
haverá certamente doçura no olhar sol na alma
quando amanhã no acerto final a aurora raiar
talvez mais genuína quiçá menos crassa
sem dúvida muito mais calma


[in Palimpsestos]
© Manuel Fontão

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