2012/07/04

chamo-te nádia

chamo-te nádia
foi o nome que te dei
em guisa de desenlace de um romance sem fim
quer dizer em homenagem a esse corpo doido sedento
lascivamente bem disposto
à hora do jantar sem credo nem lei

foi o nome que te dei
porventura natural quiçá travesso
por esses teus suspiros de amante castiça
e por essa pequena ruga na fronte do teu rosto
a trair, sem que o saiba, a meu lado avesso

chamo-te nádia
e não tenho mais nada
a não ser este sorriso um tanto ou quanto judeu
que todavia cultivo por tua causa
a não ser este silêncio amargo e sandeu
que no entanto arremesso à alma das cousas passadas

oh dar-te esta minha ternura melancólica
este pão branco e quente que nunca tive
estes laivos de caridade e de misericórdia
esta ténue luz de alento e de confiança
tudo isso nádia seria ainda tão pouco
tudo isso seria ainda tão injusto e tão insípido

oh nádia
esconder-te este meu olhar coronal e frio
os lugares irreais onde ainda não estive
as gotas de suor que foram então o nosso alívio
oh sim nádia se me fosse dado fazer tudo isso

chamo-te nádia
e não tenho na verdade mais nada
a não ser estes meus lábios em moratória
este meu rosto gretado pela branca geada
estas minhas mãos sulcadas pela hirta memória

não tenho mais nada mais nada nádia
a não ser este meu corpo em agonia 
esta velha carcaça cansada alquebrada
que aqui jaz do lado de fora da velha romaria 

chamo-te
mas que importa minha velha companheira de infortúnio
que importa o teu nome a tua idade o teu rosto

dá-me toda essa tua tristeza
toda essa vida de profundo desgosto
mais uns quantos minúsculos cristais de suor
para que a alquimia da palavra te faça mosto
pronto a regar velhos repastos de conduto insosso
nádia de cor
nádia de etérea carne e colo e osso
© Manuel Fontão

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