2012/07/01

Baudelaire revisitado - II

que importa se os meus princípios de justiça estão hoje liquefeitos o sol do meio-dia do meu pardacento horizonte era tão autêntico tão natural que mesmo as convenções mais especiosas mais inocentes não resistiram jazem a meus pés desfeitos 

que importa se não posso hoje aprovar que o machado e aquilo que ele outrora cortou fossem duas coisas distintas dois atos diferentes agrupados num só e mesmo pacto 

mas vejamos as duas partes agora divididas nunca foram verdadeiramente litigantes elas já eram amantes de qualquer coisa que ainda persiste no pensamento de alienados elas já eram companheiras enamoradas de uma realidade que todavia os logra em cada dia oh sim elas já eram vítimas objetivas da lâmina dessa maldita lâmina do tempo que sempre foi e sempre será estranha aos acordos da confraria

mas que importa se confiei então todos os meus segredos de juventude a uma águia de olhos furados não será certamente por isso que a zebra sibilina charmosa maldicente deixará de dar largas aos boatos de uma vida marcada pelo contraste 

mas que importa tudo isso se nas ruas nos campos por toda a parte dezenas de mulheres sem rosto sem nome sem esperança se encontravam dispersas em esforço na vertente vertiginosa fervente da fonte de múltiplos desejos

sim escolhi todavia o sonho é que só ele contém centenas de rostos milhares de figuras feminis à deriva miríades de enleios em ebulição só ele ostenta do lado de fora do seu hemisfério esquerdo uma cicatriz verdejante onde está contida a tua beleza e todo este terrível segredo de não ser quem deveras gostarias

mas que importa afinal tudo isto se a águia essa águia de olhos esburacados sedenta de sangue continua jocosa jovial a atacar em voo picado o golpe raso da famigerada zebra
© Manuel Fontão

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