2012/06/29

Conceitos básicos de morfologia

1. Escopo do objeto


     A Morfologia, segundo o Dicionário Terminológico, consiste numa disciplina que:

(1) descreve e analisa a estrutura interna das palavras e os processos morfológicos de variação e de formação de palavras

     Já segundo Azuaga (2005: 216) refere que a Morfologia:

(2) É uma disciplina linguística que tem a palavra por objeto e que estuda, por um lado, a sua estrutura interna, a organização dos seus constituintes, e, por outro, o modo como essa estrutura reflete a relação com outras palavras, que parecem estar associadas a ela de maneira especial. 



2. Conceito de palavra


Para o leigo, a palavra é uma unidade de sentido indivisível, delimitado, na escrita [1], por um espaço em branco. E, em boa verdade, muitos vocábulos comportam-se como tal. Basta pensarmos em ocorrências como /bom/, /mau/, pai/ ou /mãe/, para nos apercebermos de que não é possível segmentá-las em elementos mais pequenos, sob pena de destruirmos o sentido de que estão investidas. São as chamadas palavras simples, formadas por um único radical, sem afixos derivacionais, não obstante poderem conter, afixos flexionais, como por exemplo:

(3a) ligeir o
(3b) crav o s
(3c) lig a r

Contudo, um grande número de palavras do Português são segmentáveis em unidades mais pequenas, sem que tal operação implique um esvaziamento total do sentido de cada uma das suas partes constituintes, quer dizer, sem que a decomposição implique necessariamente uma perda total do significado. São as chamadas palavras complexas, formadas por derivação ou por composição, como por exemplo:

(4a) ligeir ez a
(4b) crav inh o
(4c) des lig a r
 

3. Morfema

Para Bloomflied (1933: 161), um morfema é, por um lado, uma combinação de sequências fonológicas, e, por outro, uma unidade de sentido, ou seja, uma forma que não apresenta semelhanças fonético-semânticas com qualquer outra forma.
Por seu turno, o morfe é um elemento que pode ser escrito ou falado, isto é, uma unidade que realiza (na fala ou na escrita) a unidade abstrata correspondente: o morfema. Nesta perspetiva, poder-se-á dizer que não se pode ouvir ou pronunciar um morfema, mas apenas o correlato que o realiza: o morfe.
De resto, quando morfes diferentes representam a mesma unidade abstrata (morfema), falar-se-á de alomorfes (do morfema considerado) [2].
Também para Martinet, o monema [3] constitui o elemento mais pequeno do ponto de vista do sentido, pertencente, segundo o autor, às unidades de primeira articulação[4]. Nesta ótica, a frase (5) contém 6 morfemas:

(5) Amanhã, o António não vai trabalhar.

 Aliás, de acordo com Martinet, existem dois grandes tipos de monemas, a saber, os monemas lexicais (lexemas) e os monemas gramaticais (morfemas) [5], sendo que os primeiros constituem inventários abertos, ao passo que os segundos constituem paradigmas fechados. Assim, e questões terminológicas à parte, temos uma representação do tipo:


     Muitos autores propuseram o conceito de morfema como unidade de base da morfologia. Percebe-se porquê. É que o conceito de palavra carecia de rigor científico, pois que estava imbuída de aceções de uso corrente, ao passo que o morfema parecia satisfazer as necessidades da ciência [6]. Mas bem cedo surgiram alguns obstáculos na sua descrição, a começar, por exemplo, pelos morfemas surgidos em amálgama. Assim, parece evidente que, em certas ocorrências, não há uma correspondência biunívoca entre morfemas e morfes, sendo que o número de morfemas é, por vezes, superior ao número de morfes encontrados. Seja a frase (5) temporal e espacialmente modificada como em (7):

(7) Ontem, o António não foi à escola.

em que se constata que a forma verbal /foi/ comporta vários morfemas, a saber: (i) o morfema do verbo [SER], (ii) o morfema do [SINGULAR], (iii) o morfema do [PASSADO] e (iv) o morfema de [TERCEIRA PESSOA] [7]. Do mesmo modo, a contração /à/ encerra, num nível mais abstrato da língua, o morfema [PREPOSIÇÃO SIMPLES] e o morfema [ARTIGO DEFINIDO].
     Um outro problema conhecido é o caso dos interfixos, que as gramáticas tradicionais denominam vagamente como elemento de ligação entre a forma de base /café/ e o sufixo /-eira/. Com efeito, neste caso, os morfes segmentáveis excedem o número de morfemas representados, em que o elemento formativo – t – não corresponde a qualquer morfema ou lexema, razão pela qual se terá de admitir a existência de um morfe zero, semanticamente vazio, mas que não pode, obviamente, ser ignorado na análise morfológica da palavra:


     Para finalizar cursivamente este rol de problemas descritivos, lugar, ainda, para o caso dos nomes como /lápis/, que formam o plural /lápis/, que, contrariamente à regra geral, não admitem o morfema flexional correspondente à pluralização [s] [9]. Claro que alguns teóricos, a exemplo do mecanismo explicativo anterior, falam, também aqui, da existência de um morfe zero para dar conta da homonímia.
    Por conseguinte, compreende-se que a teoria morfológica atual, em particular, a superveniente da linguística generativa, tenha abandonado o conceito de morfema, adotando a palavra como unidade analítica de base…


4. Constituintes morfológicos

   Segundo o Dicionário Terminológico, o constituinte morfológico é uma unidade constituinte das palavras, como, por exemplo, os radicais e os afixos [e, curiosamente, acrescenta que] a um constituinte morfológico mínimo [se] chama morfema [10]. Neste sentido, poder-se-á representar graficamente o objeto em análise como se segue:


4.1. o radical

  O radical das palavras simples é uma forma não segmentável, i. e., não divisível, que pode ser representada da seguinte maneira: 

   Já no que toca às palavras complexas, o radical constitui uma forma complexa, integrando dois ou mais constituintes morfológicos, sendo que um deles é, obrigatoriamente, um radical simples:



   Os radicais simples são as unidades lexicais que transportam consigo o conteúdo (morfológico, sintático e semântico), especificando, por conseguinte, a categoria sintática, a classe temática e o género, isto é, são identificados por etiquetas como radical adjetival, radical adverbial, radical nominal, radical verbal, conforme representação que se segue: 



4.2. as classes temáticas

    Os verbos, os nomes e os adjetivos distribuem-se por diferentes classes temáticas. A pertença de um radical a uma dada classe temática é, como ficou dito acima, uma relação lexicalmente determinada e que geralmente é tornada visível através da presença de um sufixo entre o radical e a flexão, que se designa por constituinte temático
Ora, às classes temáticas dos verbos dá-se o nome de conjugações e o seu constituinte temático é chamado vogal temática. De resto, no português, os verbos distribuem-se por três conjugações:


     A integração dos nomes e dos adjetivos em classes temáticas, que uma longa tradição designa de declinações, reveste-se de uma certa complexidade, dado que ela é definida em função de três fatores: 
  (a) a natureza do constituinte temático, que nos nomes e nos adjetivos, toma o nome de índice temático, gera uma distinção entre formas de tema em – a  (poeta, aluna, monarca [11], mapa, mosca, casa, artista, clara, careca), formas de tema em – o (aluno, ídolo, livro, tribo, modelo, claro), formas em – e (infante, abutre [12], dente, gente, semente, agente, leve), formas de tema em – O (imperatriz, furriel, mar, variz, mártir, falador, apresentador, cortês [13], formas atemáticas (avô, avó, tabu, café, manhã, selvagem, ruim) [14], e, por fim, formas com constituintes marginais (piegas);
    (b) o acesso dos adjetivos e dos nomes a contrastes de género gera uma distinção entre formas variáveis (aluno/ aluna; imperador/ imperadora/ imperatriz, claro/ clara; o/ sã) e formas invariáveis (ídolo, mosca, artista, mapa, tribo, leve, ruim, vítima, testemunha [15]);
     (co valor do género que possuem gera uma distinção entre formas masculinas (aluno, monarca, café, claro, falador) e formas femininas (aluna, gente, tribo, clara, ) e ainda formas que admitem os dois valores de género (artista, modelo, agente, mártir, selvagem, careca, leve, cortês, ruim [14].

     Ora, a conjugação destes três fatores dá origem a diferentes classificações para nomes e adjetivos. Assim, para os nomes, é possível identificar um sistema de vinte e três classes temáticas, de cuja matriz se pode constatar que todos os nomes variáveis têm como referente uma entidade animada [+ hum], como por exemplo infante, avó, mas a observação dos dados mostra que nem todos os nomes que referem entidades animadas são nomes variáveis (patriarca, ídolo, mosca, gente).
Por outro lado, verifica-se que, tendencialmente, os nomes de tema em – o são masculinos (aluno, livro) e que os nomes terminados em – a são femininos, mas nenhuma generalização pode ser, de facto, estabelecida, dado que (i) há nomes terminados em – o que são femininos (tribo) ou que admitem os dois valores de género (um/uma modelo), (ii) há nomes terminados em – a que são masculinos (poeta, patriarca, mapa) ou que admitem os dois valores do género (um/uma artista) e (iii) o valor de género dos nomes terminados em – e, dos nomes terminados em – O e dos nomes atemáticos é totalmente arbitrário (pente / lente; arroz /noz; / ).

(15) classes temáticas do nome:



(16) classes temáticas do adjetivo:




5. o tema

     Voltando à descrição da estrutura morfológica elementar, podemos dizer que o tema é a unidade morfológica que domina o radical e o constituinte temático, i. e., o afixo que especifica a classe temática do radical: índice temático (IT) para os nomes e adjetivos e vogal temática (VT) para os verbos.


Os temas verbais do português são de certa forma motivados, pois que os sufixos derivacionais deverbais são sensíveis às subclasses desta categoria morfológica:

(18a) fala a dor [*faledor; *falidor];
(18b) sab e dor [*sabador; *sabidor];
(18c) med i dor [*medador; *mededor].

Nota: em caso de dúvida ou de sugestão, contactar, p.f. mffonsec@gmail.com  
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[1] Neste caso, falar-se-á de palavra ortográfica.
[2] Poder-se-á considerar um morfema [PLURAL] que apresenta, em determinados contextos, uma espécie de alomorfismo condicionado pelas regras fonéticas…
[3] O monema, tal como o concebe Martinet, está muito próximo da conceção de morfema (termo oriundo do distribucionalismo americano.
[4] De acordo com este autor, as unidades de segunda articulação seriam os fonemas, as unidades mais pequenas do ponto de vista da forma…
[5] Aliás, na base desta distinção o autor fala de morfemas livres e de morfemas presos
[6] Registe-se, no entanto, que o conceito nasceu no seio do estruturalismo linguístico, que já possuía um modelo para a análise morfológica, assente, como se calcula, no conceito de fonema – a unidade mínima do ponto de vista da forma
[7] Este tipo de morfe, porque encerra vários morfemas, é conhecido como morfe portmanteau.
[8] Os interfixos prendem-se com as regras morfotáticas da lingua.
[9] Claro que se trata, aqui, da consoante teórica que os vários contextos se encarregarão de atualizar. Ex.: os lápis azuis; os lápis grandes e finos; os lápis com ponta afiada.
[10] Com efeito, a análise consagrada pelo uso não abdica facilmente do conceito, pois que o mesmo encerra um grande rendimento operacional...
[11] Designados nomes comuns de dois.
[12] Nomes epicenos.
[13] Note-se que esta classe temática integra as palavras acabadas em  - r, - s, - z e - l, cujo plural, para além do sufixo próprio (-s), recorre (i) a uma vogal epentética na posição do índice temático ou (ii) à nuclearização do [l] final. Exemplos:




[14] São atemáticas na medida em que não possuem índice temático, pelo que a forma da palavra, no singular, é idêntica à forma do radical. Estas palavras terminam, geralmente, em vogal tónica, oral ou nasal (chá, irmã) ou ditongo tónico, oral ou nasal (chapéu, irmão), mas também se encontram formas terminadas em vogal átona (táxi), vogal nasal (viagem) e em consoante (cais, lápis).
[15] Nomes sobrecomuns.
© Manuel Fontão

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