2012/06/29

Baudelaire revisitado


ele desde tenra idade
ficara coitado sem pai

ia todas os domingos à missa e ouvia
alguém que numa voz grave tonitruante
dizia que Deus Deus era bondade
e que das crianças indiferentemente gostava

ele via desse modo algo nele a despontar
uma embora vaga esperança
alimentada pelo patético da situação
e não fazia mais nada senão carpir mágoas
                                      
ele pensava poder dessa forma cretina
a piedade divina algum dia despertar
não sonhando sequer o pobre diabo
que a sua própria dor aos olhos alheios
ingenuamente expor constituía por definição
um grave crime de lesa-humanidade

ele tornou-se todavia adulto
mas bem cedo os homens
por desdém ou por vaidade
calcularam que ele lhes era um insulto

e mesmo os cães sem beira nem dono
dificultavam-lhe a vida embargavam-lhe a voz
roubavam-lhe o sono
                            
o monstro como aliás todos os homens envelheceu
e quando de tudo isto já moribundo se recorda
ele não fala berra

tenho uma enorme vontade
de quando finalmente subir aos céus
deitar os egrégios deuses à terra       
                       
                                                © Manuel Fontão

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