2012/01/05

Os discursos literários e a abordagem comunicativa

Toda a obra literária é assumida por um autor que se dirige, implícita ou explicitamente, a um leitor universal. Assim perspetivado, o discurso literário revela-se assimétrico, pois o potencial leitor não poderá, em caso algum, vir a funcionar como um emissor, a exemplo do que se passa, nomeadamente, nas trocas verbais, as quais pressupõem um recetor/emissor, isto é, um alocutário capaz de co-construir, em tempo real e de forma síncrona [1], o enunciado, cuja participação ativa dependerá, em última análise, das suas necessidades comunicativas. Note-se, de resto, que a presença física de dois interlocutores não constitui um traço distinto entre estas duas formas de comunicação, uma vez que as conversações telefónicas ou as videoconferências, por exemplo, entram, como é óbvio, no vasto domínio das trocas verbais, apesar de os dois ou mais interactantes se situarem, necessariamente, em espaços diferentes e à escala interplanetária…

Ora, não obstante o que acaba de ser enunciado a propósito do discurso literário, é quase uma banalidade afirmar que estamos em presença de comunicação, como defende – e muito bem – a teoria dos speech acts. De resto, no decurso da década de oitenta e sob a influência dos trabalhos de Austin e de Searle, assistiu-se, sobretudo nos países de matriz anglo-saxónica, ao aparecimento de uma abordagem pragmática da comunicação literária, que, então, visava aplicar a noção de ato de linguagem ao discurso ficcional, e, nesta matéria, ficaram famosos os debates, sempre mais ou menos acalorados, entre os apologistas de uma conceção despragmatizada da literatura (que defendiam a tese segundo a qual a ficção não possuía qualquer valor de ação), aqueles que aproximavam o texto literário dos speech acts e outros, ainda, que, no seguimento de Sartre, preconizavam o facto de os escritores compreenderem o ato de escrita, por um lado, como o exercício de uma certa influência sobre o leitor, e, por outro, como um rol mais ou menos infinito de efeitos – tanto cognitivos, como emocionais – sobre os seus leitores. E não sem razão, pois que, segundo Jean-Paul Sartre:

A prosa é utilitária por essência; eu definiria de bom grado o prosador como um homem que se serve das palavras. Jourdain fazia prosa para pedir as suas pantufas e Hitler para declarar a guerra à Polónia. O escritor é um falador: ele designa, demonstra, ordena, recusa, interpela, suplica, insulta, persuade, insinua. [Qu’est-ce que la Littérature, Paris, Folio, 1948, p. 25]

E, um pouco mais à frente, o autor resume-se a preceito:

Falar é agir: todo o objeto que nomeamos já não é, em rigor, o mesmo, pois ele perdeu a sua candura. Se nomeamos, por exemplo, a conduta de um determinado indivíduo, estamos a revelá-la: ele revê-se nela. [idem, p. 27]

Na verdade, os textos podem muito bem fazer rir, provocar o choro ou a comiseração, potenciar um sentimento de medo, de ódio, de angústia, de censura – entre toda uma panóplia de efeitos perlocutórios. E, para nos convencermos desta dimensão pragmática do texto literário, basta pensarmos, por exemplo, na comédia ou na tragédia do século XVII, cujo objetivo consistia, respetivamente, em provocar o riso e fazer chorar. Dito por outras palavras, parece que a tradição retórica, ainda que de forma implícita, se fundamenta, afinal de contas, nos valores ilocutórios, para, desse modo, elaborar a sua tipologia dos géneros, assente, no essencial, na famosa tríade funcional docere/delectare/movere – ainda que possamos, aqui e ali, distinguir vários tipos de ensino, várias formas de divertimento e outras tantas formas de emoção. Aliás, a ideia de género foi, ao longo dos tempos, retomada, quer ao nível da obra literária entendida como um todo, quer ao nível da sua estrutura interna, como por exemplo, a noção genettiana de modo ou a noção de sequência, tal como a descreve J.-M. Adam, quando refere que todo o texto se compõe de sequências elementares de natureza narrativa, descritiva, argumentativa ou explicativa [Les textes: Types et Protypes, 2005].

Em todo o caso, e tal como refere Maingueneau, todo o discurso literário pode ser considerado como constituindo uma espécie de metagénero que implica, por um lado, um pacto ilocutório, e, por outro, um feixe de condições particulares de realização [Pragmatique pour le discours littéraire, Paris, Bordas, 1990, p. 12].

Por outro lado, e tendo em conta que o autor, a nível intradiegético, efetua a gestão da fala das suas personagens, importa perceber, pois, a natureza destas trocas verbais. E, tudo quanto possamos dizer a este respeito, é que se trata, com efeito, de um simulacro de conversações. Daí que Paul Ricoeur fale, a este propósito, de uma tripla mimeses, a saber, o plano da prefiguração (situada a montante da textualização, em que a intriga constitui uma representação de experiências inteiramente apoiada numa enciclopédia comum), o plano da sucessão e da configuração (em que a produção de uma intriga se define pela capacidade de transformar uma sucessão de experiências num todo organizado passível de ser compreendido pelo leitor) e o plano da reconfiguração (situado a jusante do texto, em que a reconfiguração da experiência descrita corresponde à intersecção do mundo configurado pela história contada e do mundo experiencial do leitor).

Face ao exposto, e adotando o argumento ad absurdum, poder-se-á indagar acerca do grau de fidelidade da representação do discurso literário, sobretudo, quando cotejado com a panóplia de trocas verbais autênticas, ou, dito por outras palavras, poder-se-á questionar o grau de mimetismo dos discursos fabricados na e pela ficção. Ora, a questão reveste-se de alguma complexidade, mas, se tomarmos em conta uma vulgar chamada telefónica como a que se transcreve abaixo:

– Fala António Claro (…).
– Bons dias!
– Talvez esteja a ligar demasiado cedo…
– Não se preocupe, já estou levantado e a trabalhar.
– Se vim interromper, telefonarei mais tarde…
– O que estava a fazer pode esperar uma hora, não há perigo de lhe perder o fio…
– Indo direito ao assunto, pensei muito seriamente durante estes dias e cheguei à conclusão de que nos deveríamos encontrar…
– É essa também a minha opinião, não teria sentido que duas pessoas na nossa situação não quisessem conhecer-se.
– A minha mulher tinha algumas dúvidas, mas acabou por reconhecer que as coisas não podiam ficar assim…
– Ainda bem… [2]

ou um fragmento de um interrogatório policial, tal como o que se segue:

– Esteve sempre hospedado no Hotel Bragança desde que chegou?
– Sim senhor.
– Em que barco viajou?
– No Highland Brigade, da Mala Real Inglesa, desembarquei em Lisboa no dia vinte e nove de Dezembro.
– Viajou sozinho, ou acompanhado?
– Sozinho.
– É casado?
– Não senhor, não sou casado, mas eu gostava que me dissessem por que razão fui aqui chamado, que razões há para me chamarem à polícia, a esta, nunca pensei…
– Quantos anos viveu no Brasil?
– Fui para lá em mil novecentos e dezanove, as razões, gostaria de saber…
– Responda só ao que lhe pergunto, deixe as razões comigo, será a melhor maneira de tudo correr bem entre nós.
– Sim senhor.
– Já que estamos a falar de razões, foi para o Brasil por alguma razão especial?
– Emigrei, nada mais,
– Em geral, os médicos não emigram…
– Eu emigrei.
– Porquê, não tinha doentes aqui?
– Tinha, mas queria conhecer o Brasil, trabalhar lá, foi só por isso…
– E agora voltou…
– Sim, voltei.
– Porquê?
– Os emigrantes portugueses às vezes voltam…
– Do Brasil, quase nunca…
– Eu voltei.
– Corria-lhe mal a vida?
– Pelo contrário, tinha até uma boa clínica…
– E voltou…
– Sim, voltei…
– Para fazer o quê, se não veio fazer medicina?
– Como sabe que não faço medicina?
– Sei. [3]

teremos de concluir que, sem outros indícios contextuais à mistura, os exemplos , extraídos, respetivamente, do Homem Duplicado (2002) e do Ano da Morte de Ricardo Reis (1984) de José Saramago, tanto podem pertencer, em tese, ao universo das trocas autênticas, como ao universo ficcional. Claro que me poderão objetar que, neste nível micro, o cálculo interpretativo dependerá, em última análise, daquilo que precede, mas o argumento não colhe, pois que, no nosso dia-a-dia, também somos confrontados com extratos conversacionais aparentemente estranhos do ponto de vista da receção, justamente, porque nos terá escapado, por este ou por aquele motivo, as condições da sua realização. Assim, por exemplo, à mesa:

Loc. A: Excelente, esta picanha. E se não tivesses seguido esse caminho, que gostarias então de ter sido?
Loc. B: Só falta o Rui… Mais um bocado de molho!
Loc. C: Sei lá. Também não seria agora…
Loc. D: Queres mais?...
Loc. A: E por que não? Nunca é tarde para se fazer certas coisas…
Loc. B: Já chega! Inundaste-me o prato…

Tudo é, pois, uma questão de dosagem. E de bom senso, pois os corpus literários não poderão, decerto, ser utilizados de forma acrítica e prontos a consumir. Com efeito, não se vislumbra qualquer interesse prático em nos socorrermos de enunciados ficcionais para, por exemplo, observar a alternância de fala ou os complexos mecanismos das marcas de reformulação, como por exemplo, as auto e as heterorreparações, tão frequentes, aliás, nas construções improvisadas das trocas verbais. Mas o mesmo já não acontecerá, se o objetivo se prende, antes, com os atos de fala, os quais decalcam, segundo toda a verosimilhança, o real – tal como ficou provado acima. De resto, a literatura também se rege, como deveria, por um conjunto de restrições que relevam do mundo real, designadamente, a regra da verosimilhança, a lei da ubiquidade, etc. Na realidade, e a título ilustrativo, se um narrador coloca em cena uma das suas personagens, por exemplo, o José, afirmando que a personagem participará nas vindimas da região duriense lá para meados do próximo mês de fevereiro ou que o mesmo José, natural de Viana do Castelo, costuma sair, todas as noites, para ir pescar lá para os lados da Costa Vicentina, os respetivos enunciados podem ser - e são - válidos do ponto de vista gramatical, mas já não são aceitáveis na sua vertente pragmática, dado que ambas as situações infringem as regras do mundo real, a saber, que as vindimas decorrem, ipso facto, em setembro e que a distância física entre Viana do Castelo e as praias da costa oeste do Algarve inviabiliza um itinerário diário de algumas centenas de quilómetros inscrito num intervalo de tempo tão curto…

Por conseguinte, e em guisa de conclusão, poder-se-á afirmar que as regras que presidem aos diálogos autênticos (isto é, aqueles que emanam de situações concretas e espontâneas e que colocam, pelos menos, dois interactantes em situação) são exatamente as mesmas que regem os enunciados dialógicos, ou seja, aqueles que relevam dos universos diegéticos. Dito noutros termos, ambos obedecem, necessariamente, aos mesmos mecanismos de coesão e de coerência, observam as mesmas regras de cortesia, e, por fim, subordinam-se à mesma lógica psicológica. Significa isto que, quer as sequências dialogais, quer as dialógicas, apenas diferem das respetivas condições de produção e de receção, pelo que o estudo resultante se inscreverá menos numa eventual teoria do mimetismo do que numa perspetiva transsemiótica, neste sentido que o interesse consistirá, antes de mais, em perceber como é que uma mesma atividade comunicativa (como por exemplo, um interrogatório, uma conversação telefónica ou uma conversa à mesa) é tratada nos diferentes sistemas semióticos – não apenas no romance, mas também no teatro, na ópera, no cinema, na banda desenhada, na publicidade, na reportagem, na entrevista, etc.

Por conseguinte, e de acordo com o que ficou exposto, é possível perceber alguns traços distintivos entre as estruturas dialógicas (romanescas) e os diálogos naturais, a saber, as suas condições de emissão e de receção. Primeiro, porque o enunciado ficcional é, por definição, polifónico, na medida em que é invariavelmente assumido por diferentes instâncias enunciativas (autor, narrador, personagens). Objetar-me-ão, por certo, o recurso ao conceito de autor, isto é, ao homem em carne e osso, àquele que consta do registo civil, como dizia Philippe Lejeune, mas, em boa verdade, é essa instância genética a entidade máxima responsável pelo enunciado, quer dizer, é ela que superintende a gestão do discurso do narrador e que, de resto, se assume como distribuidor de alternâncias da vez pelas várias personagens. Dito por outras palavras, cabe, em última análise, ao autor a gestão do seu plano discurso, isto é, a forma como ele – a auctoritas – vai revelando o que é dito, assim como as implicitações e os silêncios (não-dito) inscritos num determinado tempo e espaço – e não noutros. Ora, isto implica que o todo dialógico seja considerado, necessariamente, como um pré-construído, uma vez que o diálogo romanesco é inteiramente programado, elaborado num tempo prévio à sua textualização, e, em definitivo, redigido numa temporalidade que nada tem que ver com a da interação. Claro que o procedimento pode visar um certo efeito de espontaneidade – e, regra geral, é isso que acontece – mas trata-se, como é óbvio, de uma estratégia assente no faz de conta, uma espécie de como se, razão pela qual qualquer marca do trabalho de reformulação, como por exemplo, as hesitações, as reformulações, os silêncios, etc. soam, sempre e inevitavelmente, como uma saturação mais ou menos abusiva do sentido do texto. E percebe-se a razão. É que, por muito que o autor se queira aproximar da impressão de improvisação, tão característica dos diálogos ordinários, a verdade é que a estratégia está necessariamente condenada ao fracasso em razão de um conjunto de restrições que emanam, antes de mais, do código semiótico escolhido a montante. Assim, toda e qualquer tentativa de tentar sobrepor os dois códigos semióticos será sentida, a jusante, como um efeito de sobredeterminação, a fazer lembrar o programa de ação das correntes surrealistas, cujas orientações tinham como escopo inscrever a literatura no mundo real. Em vão, porém. Que as personagens, como já dizia Roland Barthes, são seres de papel, e, como tal, podem sair à rua e matar ao acaso, sem que haja, por isso, consequências ontológicas, axiológicas, religiosas, jurídicas – entre outras. Mas o mesmo já não aconteceria, se, porventura, o ato se inscrevesse no mundo real: aqui, as regras encerram uma dimensão outra, emanam da doxa, delimitam a linha divisória do proibido, e, como tal, carecem de uma estratégia de legitimação, tanto individual como social…

Relativamente ao segundo traço pertinente, a saber, as condições de receção, parece óbvio que os diálogos entre dois ou mais alocutários, quer romanescos, quer autênticos, encerram a mesma problemática, pois que, no que toca aos primeiros, para além dos alocutários imediatos, a verdade é que o todo ficcional se destina, a jusante, a um destinatário último: o leitor. Significa isto que, não obstante as personagens de ficção comunicarem cara-a-cara, há que ter em conta o facto de o mecanismo ser da responsabilidade exclusiva da instância genética (o autor), pelo que o leitor não tem, obviamente, acesso ao contexto nem ao quadro participativo, mas apenas ao sucedâneo dialógico e mediatizado pela autoridade textual.



A abordagem comunicativa

Com a introdução da abordagem comunicativa ou funcional, por volta dos anos 70, os atos de fala adquirem, finalmente, uma importância preponderante (ainda que, por vezes, mal compreendidos) no processo de ensino/aprendizagem, designadamente, no que concerne à didática das línguas estrangeiras (DLE). Aliás, uma rápida pesquisa do tema, nos vários auxiliares didáticos (vulgo manuais), deixa amplamente perceber que a conceção da língua já não se limita apenas às atividades ancestrais, acantonadas na arte de contar e de descrever, ou seja, já não se circunscreve apenas à sua dimensão estética, mas releva, muito justamente, de uma dimensão utilitária. Destarte, a língua – e a linguagem – assume-se, concetualmente, como uma ferramenta (como um utensílio), através da qual o utilizador pode operar sobre o real – quer para o manter, quer para o modificar. Dito por outras palavras, reconhece-se o facto de a linguagem servir para fazer um pedido, para exprimir uma ordem, para expressar um desejo, para formular um juízo de valor, para agradecer, para felicitar, etc. Significa isto que o locutor recorre à linguagem, certo, mas, ao fazê-lo, entende, fundamentalmente, realizar um ato de fala preciso, como por exemplo, o anúncio do fim de uma tarefa, a formulação de uma despedida, a recusa e/ou aceitação de uma permissão, etc. Assim, e nesta ótica, o esforço empreendido pelo Conselho da Europa, designadamente, através da elaboração do Quadro Europeu Comum de Referência, que visa fornecer, ao conjunto dos utilizadores de uma determinada língua, os meios indispensáveis para a aquisição de uma competência comunicativa, consubstancia, no plano teorético, esta nova atitude face à língua, que, no essencial, se pode resumir à aptidão do aprendente (é capaz) de realizar um certo número de operações, não apenas linguísticas, mas, sobretudo, funcionais.

Sem prejuízo da validade da abordagem comunicativa, importa, todavia, ter presente que muitos auxiliares didáticos fizeram, lamentavelmente, um uso pouco esclarecido e pouco organizado dos seus princípios fundamentais. E, neste particular, basta pensar na conceção global de alguns manuais, cujos autores, talvez por não terem sabido resistir à deriva terminológica e aos modismos, resolveram simplesmente alinhar os conteúdos programáticos em função dos atos de fala. E o resultado, pouco menos do que catastrófico, pode ser mensurado à luz da subordinação, de forma mais ou menos acrítica, da totalidade dos materiais de aprendizagem em função exclusiva de unidades pseudodidáticas pomposamente intituladas como atos de linguagem, atos de fala, atos de comunicação [4], saber/fazer, funções da linguagem, objetivos comunicativos, objetivos funcionais, objetivos de aprendizagem, etc., sem se perceber muito bem, de resto, o estatuto categorial que tais conceitos encerram na economia geral dos respetivos trabalhos.

Ora, uma coisa é falar, por exemplo, de atos de fala, cujos mecanismos se prendem, fundamentalmente, com a linguagem verbal, ou seja, com as componentes fonológica, lexical e morfossintática, remetendo o paraverbal para um lugar subsidiário na construção do sentido; outra, bem diferente, é adotar uma perspetiva comunicativa (atos comunicativos), os quais implicam, como é óbvio, não apenas a linguagem verbal, mas, também, a linguagem paraverbal (prosódia e sinais vocais, a saber, a entoação, a pausa, a intensidade articulatória, o ritmo, as particularidades fonatórias, as diferentes características da voz) e mesmo a linguagem não-verbal (sinais corpóreos, praxeológicos, visuais, quer se trate dos estáticos, quer se trate dos cinéticos). Aliás, a mesma crítica pode ser legitimamente endossada à confusão concetual entre objetivos funcionais, objetivos comunicativos e objetivos de aprendizagem, os quais se situam, como é evidente, em diferentes planos teoréticos, dado que levantam pressupostos filosóficos e linguísticos (mormente, pragmáticos) bastante diversos, decalcam realidades processuais bastante assimétricas, e, como tal, encerram um escopo pedagógico/didático específico, quer dizer, dotados de características próprias – que importa delimitar a montante.

De resto, e para melhor ilustrar a forma prolixa como o assunto é, por vezes, tratado nalguns projetos didáticos, basta perceber que, por detrás da heterogeneidade das categorias referidas supra e das diferentes competências associadas ao saber/fazer, se encontram, no fundo, atos de fala tão naturais e tão necessários como apresentar-se, apresentar alguém, saudar, despedir-se, pedir/dar uma informação, exprimir um desejo, expressar uma necessidade, aceitar, recusar, dar uma ordem, dar um presente (oferta), agradecer, convidar alguém, formular uma opinião, concordar, discordar, exprimir sentimentos, etc. Não se julgue, no entanto, que a realização de qualquer destes atos de fala prima pela simplicidade pragmática – aliás, essa é uma perspetiva reducionista da teoria da interação – pois que todos os exemplos considerados requerem, como é lógico, a sua inclusão, não apenas num quadro participativo particular, mas também numa situação comunicativa específica (daí que seja bastante fácil cair, nesta matéria, no estereótipo…), sem esquecer, como é óbvio, o contexto singular da sua realização e o papel social desempenhado pelos interactantes do momento.

Dito isto, é fácil perceber que a estratégia adotada por alguns projetos didáticos se revela, obviamente, duvidosa, para não dizer errada, pois que se torna necessário, nesta matéria, operar a distinção, a meu ver, pertinente entre microatos e macroatos (atividades), assim como é de todo recomendável eliminar, por exemplo, o caráter artificial das situações, para, desse modo, evitar a simplificação abusiva das trocas verbais face ao funcionamento real das interações. É que, registe-se em guisa de parênteses, uma tal abordagem não pode perder de vista a lei geral da progressão, o que implica que ela deva ser devidamente acompanhada das componentes lexical e sintática, sem cujo domínio se corre o risco de cair no reino da irracionalidade. De igual modo, importa observar que as entradas funcionais consideradas acima não podem fazer tabula rasa da diversidade das necessidades comunicativas dos aprendentes, assim como não devem prescindir da variação cultural associada aos microatos e aos macroatos (isto é, os scripts das interações consideradas).

Em todo o caso, e malgrado o cortejo de críticas que se possa fazer a esta visão funcional da linguagem, a verdade é que tal facto não invalida a pertinência e a justeza dos princípios subjacentes à abordagem comunicativa, até porque tal perspetiva permitiu, entre outras coisas, uma nova segmentação da matéria a carrear para a cena didática, uma reorganização completa dos dados linguísticos, que, doravante, se subdividem na sua dupla dimensão – estética e utilitária, ou melhor, utilitária e estética, porquanto esta última ordem decalca a realidade, na medida em que o utilizador se serve da língua (transformando-a em linguagem…) para exprimir, primeiro, as suas necessidades básicas e, só depois, é capaz de usufruir do prazer estético que ela lhe pode proporcionar. Tal como recomenda a lei da progressão e da complexificação dos conteúdos.

Pena, todavia, que os programas curriculares para os níveis mais avançados, reféns de uma lógica circular e marcada pelo idiotismo do eduquês, se preocupem quase exclusivamente com as ferramentas básicas – que, supostamente, foram assimiladas nos níveis iniciais. E que usem e abusem dos esquemas concetuais fixos e prederminados, das técnicas diretivas e dos modelos deterministas. Daqui resulta, em grande parte, a visão mercantilista das sociedades coetâneas – que os vários sistemas de ensino nacionais, assentes numa lógica da mediocridade, ajudam a promover. E, se fosse preciso citar um exemplo ilustrativo deste nivelamento por baixo do todo educativo, teria de recorrer a Bolonha, cujo processo veio legitimar a visão curricular nec plus ultra. Quer dizer, porto de abrigo para além do qual não é conveniente aventurar-se. Cais fechado sobre si próprio, ou dito noutros termos, espaço que, doravante, não serve de lugar de embarque. Nem de desembarque. Nem tampouco de ponte para a outra margem. Que, soltas as amarras, correr-se-ia, por certo, o risco de naufragar. E o mar é tanto… E a vida é tão breve...

Em suma, o currículo coetâneo lembra, de alguma forma, aquela bailarina que aprendeu as técnicas elementares do seu ofício – mas que uma certa política do espetáculo não permite, em caso algum, que ela entre no salão de dança – no baile. Deixemo-la ficar à porta… na esperança de que ela vá dentro. 
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Notas:

[1] Claro que as noções não constituem valores categóricos, pois assistimos, nos tempos de hoje, a toda uma panóplia de novas formas de comunicação e importará perceber, por exemplo, se os fóruns e as salas de conversação (chats) são percebidos como formas de comunicação desenvolvidas em tempo real e de forma síncrona… 
[2] Como o leitor saramaguiano terá percebido, procedi à reformulação da forma - que não do conteúdo. Assim, transcrevo, na íntegra, como devo, o original:
Fala António Claro, foi o que disseram de lá, Bons dias, Talvez esteja a ligar demasiado cedo, Não se preocupe, já estou levantado e a trabalhar, Se vim interromper, telefonarei mais tarde, O que estava a fazer pode esperar uma hora, não há perigo de lhe perder o fio, Indo direito ao assunto, pensei muito seriamente durante estes dias e cheguei à conclusão de que nos deveríamos encontrar, É essa também a minha opinião, não teria sentido que duas pessoas na nossa situação não quisessem conhecer-se, A minha mulher tinha algumas dúvidas, mas acabou por reconhecer que as coisas não podiam ficar assim, Ainda bem. [Saramago, O Homem Duplicado, Lisboa, Caminho, p. 197]
[3] Mais uma vez, e como o leitor saramaguiano terá percebido, procedi à reformulação da forma - que não do conteúdo. Assim, transcrevo, na íntegra, como devo, o original:
Esteve sempre hospedado no Hotel Bragança desde que chegou, Sim senhor, Em que barco viajou, no Highland Brigade, da Mala Real Inglesa, desembarquei em Lisboa no dia vinte e nove de Dezembro, Viajou sozinho, ou acompanhado, Sozinho, É casado, Não senhor, não sou casado, mas eu gostava que me dissessem por que razão fui aqui chamado, que razões há para me chamarem à polícia, a esta, nunca pensei, Quantos anos viveu no Brasil, Fui para lá em mil novecentos e dezanove, as razões, gostaria de saber, Responda só ao que lhe pergunto, deixe as razões comigo, será a melhor maneira de tudo correr bem entre nós, Sim senhor, Já que estamos a falar de razões, foi para o Brasil por alguma razão especial, Emigrei, nada mais, Em geral, os médicos não emigram, Eu emigrei, Porquê, não tinha doentes aqui, Tinha, mas queria conhecer o Brasil, trabalhar lá, foi só por isso, E agora voltou, Sim, voltei, Porquê, Os emigrantes portugueses às vezes voltam, Do Brasil, quase nunca, Eu voltei, Corria-lhe mal a vida, Pelo contrário, tinha até uma boa clínica, E voltou, Sim, voltei, Para fazer o quê, se não veio fazer medicina, Como sabe que não faço medicina, Sei. [Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis, Lisboa, Caminho, pp. 261/2].
[4] Claro que esta profunda hesitação terminológica, herdeira direta da linguística saussuriana, reflete a ambiguidade do conceito de parole, quando traduzido para outras línguas.
© Manuel Fontão

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