2012/01/02

O JN e a nova forma de fazer política de Seguro

A análise que se segue incidirá tão-somente sobre o contexto de enunciado que preside ao artigo de opinião Uma nova forma de fazer política, do cunho de António José Seguro, Secretário-geral do Partido Socialista, inserido na página 24 (reservada à rubrica POLÍTICA) da edição do Jornal de Notícias do dia 24 de Dezembro de 2011. Por conseguinte, não me vou debruçar, aqui, sobre o conteúdo do texto, nem tampouco sobre as reais intenções do sujeito escrevente, que, a fazer fé no título, está decidido a inaugurar uma nova forma de fazer política, pelo menos, no que diz respeito às condições de realização do seu próprio enunciado.

Como sabemos, um texto institui, de forma mais ou menos explícita, o seu próprio contexto de enunciação. Ora, tal facto implica que todo e qualquer enunciado assente, necessariamente, num determinado quadro enunciativo, cujos parâmetros, à partida, não se encontram predefinidos e fixos, mas, antes pelo contrário, pressupõem um certo estado de coisas (históricas, cognitivas, materiais, etc.) que a palavra vai revelando e legitimando. Aliás, mesmo as frases soltas e teóricas que surgem, habitualmente, numa obra de gramática (Cf. Nova Gramática do Português Contemporâneo de Celso Cunha e Lindley Cintra), num tratado de sintaxe ou mesmo de pragmática só são compreensíveis graças ao facto de o leitor recorrer, à falta de melhor, a um contexto que opera, por assim dizer, no vazio e por defeito. Significa isto que a atividade discursiva é necessariamente tributária, por um lado, da capacidade enciclopédica do leitor (que, convenhamos, não se limita a perceber o texto, mas, sobretudo, em o organizar como discurso), e, por outro, da situação extralinguística em que o próprio enunciado se inscreve (que, no essencial, se resume a uma operação de contextualização, graças à qual a receção do enunciado se torna discursivamente possível).

De resto, como já dizia Charles Bally, quando dizemos que está frio, que está calor ou que está a chover, não queremos, por certo, significar um determinado estado de coisas, ou melhor, não pretendemos facultar, ao nosso alocutário, uma mera constatação do mundo físico, mas, antes pelo contrário, entendemos carrear no e pelo enunciado, uma certa impressão afetiva, um certo juízo de valor sobre os dados tangíveis, ou, em última análise, uma (re)construção da nossa própria imagem interlocutiva, pelo que as asserções puras são bem mais raras do que pensamos. Com efeito, um simples enunciado assertivo tal como (1):

(1) – Está frio.

pode muito bem exprimir indiretamente o desejo (de que o meu alocutário feche a janela, por exemplo), a ordem (de ligar o aquecimento), a proibição (logo, não vais sair de casa), a ameaça (vais arranjar uma constipação) ou, mais simplesmente, (1) pode entrar nos esquemas da linguagem funcional, como formulação de um pedido de desculpas, por exemplo, e, destarte, servir para antecipar o encerramento de um ritual de saudação complementar, tudo dependendo, como é óbvio, da história conversacional dos interactantes.

Ora, se é verdade que os textos de opinião são, por definição, pessoais e inteiramente subjetivos, também não deixa de ser menos verdade que eles encerram uma pretensão de validade, se não universal, pelo menos, de largo escopo recetivo. Com efeito, o opinante, embora ciente da parcialidade das suas teses, pretende, apesar de tudo, converter, convencer e arregimentar o auditório.

Assim, o artigo de opinião de José Seguro, ao assumir a primeira pessoa, inscreve-se, de pleno direito, na matriz textual anunciada pelo subgénero, pelo que aquilo que importa indagar, nesta matéria, são, sobretudo, as condições de realização da palavra. É que, ao se assumir como sujeito escrevente, em vez de conceder, como seria mais natural, uma entrevista ao jornal, ou, em alternativa, permitir que o jornal se socorra, como ocorre a maior parte das vezes, do modo de relato do discurso, António José Seguro incorre numa duplicidade de papéis sociais, a saber, (i) como cidadão que se alimenta da política, tal como o comentador político, por exemplo, e, nessa qualidade, entende exercer o seu direito de expressão, a exemplo de qualquer outro concidadão, e, (ii) paralelamente, exprime, de forma especular, a sua opinião como Secretário-geral do Partido Socialista, sendo que, nesta qualidade, o opinante alimenta, em causa própria, o discurso político, e, por conseguinte, surge como uma espécie de advogado em causa própria. A estratégia revela-se, certo, inovadora, mas o procedimento levanta, parece-me, um argumento ético, pois que, para recorrer à gíria futebolística, é como se o presidente do clube da Cruz Quebrada fosse simultaneamente dirigente e jogador. Ora, uma coisa é alimentar o futebol; outra, bem diferente, é alimentar-se dele.

Analisemos, mais de perto, pois, as condições materiais do ato de enunciação. E, nesta matéria, tudo indica que o Jornal de Notícias terá, tão-somente, cedido o respetivo espaço de diálogo. Pura ilusão de ótica, todavia, pois José António Seguro, em termos discursivos, não pode deixar de exercer o papel institucional de que está legalmente investido, no caso em apreço, o de Secretário-geral do Partido Socialista, assim como os órgãos diretivos e/ou editoriais do Jornal de Notícias não podem alegar que ignoravam o ethos do opinante. Dito isto, parece doravante evidente que o eu que fala não é, como se poderia a priori pensar, o cidadão anónimo, o homem que se encontra inscrito no Registo Civil sob o nome de António José Seguro, mas – o que é bem diferente – o Secretário-geral do Partido Socialista, aquele que foi, entre outras coisas, opositor de Francisco Assis e vencedor, em sede de congresso, das eleições para o lugar deixado vazio pelo seu antecessor.

Face ao exposto, parece legítimo concluir-se que os órgãos diretivos do JN não terão sido, obviamente, imunes ao valor institucional do protagonista, pelo que a cedência do espaço não foi apenas consentida, mas, decerto, concertada com o próprio opinante. Destarte, o texto, à superfície, ganha um certo efeito de espontaneidade, mas, tendo em conta as condições da sua realização, o artigo de opinião encerra uma espécie de logro, na justa medida em que resulta de uma negociação mais ou menos tácita ou expressa entre os critérios editoriais do jornal e a vontade mais ou menos expressa do locutor, à revelia, em qualquer dos casos, do leitor – que é a razão última de qualquer projeto jornalístico. Assim, uma questão surge no horizonte e que se relaciona com o papel que cabe ao leitor – que não foi envolvido no estranho pacto comunicativo…

Com efeito, note-se que a forma como o artigo de opinião surge, em cunha, no JN revela, quer se queira, quer não, o leitor médio gizado pelo JN, ou melhor, a forma como o leitor é tacitamente definido - e tratado - pelos órgãos diretivos do referido jornal. Tratar-se-á, certamente, de um homem vulgar, consumidor mais ou menos acrítico de notícias cruas e duras – desde o fait divers aos temas mais bairristas –, incapaz de construir, por si próprio, os mecanismos que presidem à elaboração do enunciado, em suma, um leitor que, de mote próprio, não indagará acerca das razões de fundo do produto. Seja dito de passagem que não pretendo entrar, aqui, com juízos de valor pessoais, até porque sou leitor do JN, mas apenas entendo relevar os critérios editoriais que, em boa verdade, não perdem muito tempo em explicitar os respetivos contextos de enunciação, os quais, todavia, servem de base de apoio à operação de textualização. E, nesta matéria, a boa ética jornalística recomendaria, por certo, uma nota de rodapé em que explicitasse os critérios editoriais, como por exemplo, texto enviado para a redação por iniciativa do opinante ou texto da responsabilidade exclusiva do autor ou, em alternativa, a colocação do artigo de opinião fora da página dedicada à Política ativa (sendo que o ideal seria a sua inserção na Página do leitor) e/ou a eliminação do título honorífico e hierárquico de António José Seguro, que, desse modo, falaria, supostamente, em nome pessoal – e não em nome do Secretário-geral do Partido.

Ora, nada disso foi feito, pelo que o artigo de opinião não se inscreve, como deveria, na esfera do individual (ainda que o Secretário-geral do PS possa, claro, reivindicar a sua opinião como cidadão anónimo), mas, antes, no domínio da política ativa – e, neste capítulo, exprimir a opinião política sobre assuntos da atualidade é, ainda e inevitavelmente, fazer política ativa. Por conseguinte, ao ocultar as condições de produção do texto, ao colocar o artigo de opinião entre a política (note-se que o artigo em causa surge, de forma um pouco ingénua, na página dedicada à POLÍTICA!), o JN infringe, ipso facto, o pacto jornalístico para com o seu próprio leitor, que, neste particular, não pode descortinar a parte de responsabilidade e de compromisso que coube ao JN e a parte que terá cabido ao sujeito escrevente – sendo que as consequências legais do dito, essas, caberão, por inteiro, ao locutor, seja o cidadão António José Seguro, seja o secretário-geral do Partido socialista.

Claro que o procedimento favorece, em primeira instância, os propósitos de José António Seguro, que, a coberto do JN, publica a sua opinião política sobre o seu próprio modo de estar e de fazer política. E, de facto, o eu que fala consubstancia, do ponto de vista formal, uma nova forma de fazer política, neste caso, o de submeter ao jornal – e em direto – a sua opinião sobre o mundo como ele vai. No lugar próprio. E com todas as letras. Mas, correlativamente, é o papel de jornalista que sai beliscado, na medida em que, por este viés, ele se assume, fundamentalmente, como um transcritor do dito, como um reprodutor da mensagem (note-se, com efeito, que não há intervenção do jornalista – que se limita a transcrever o que foi dito e a ceder o espaço próprio para o efeito). Mas mais grave do que tudo isto é, parece-me, o facto de o JN poder vir a ser acusado de favorecimento de uma certa facção política – em detrimento de todas as outras que compõem o espectro parlamentar.

Mas vejamos, pois! António José Seguro, no seu artigo de opinião, fala, segundo todas as probabilidades, de política – e não do passado recente do clube da Cruz Quebrada. Nem dos problemas de tesouraria sentidos pelo seu presidente. É que a linguagem tende, obviamente, a refletir a face positiva da vida, isto é, as nossas aspirações, a nossa própria tensão, a nossa necessidade perpétua de concretizarmos um determinado objetivo. Aliás, a razão de ser da natureza ativa da linguagem reside, em última análise, justamente, nesta sua tendência para a ação, razão pela qual o ato de fala se torna numa arma de combate político e social, pois que se trata, antes de mais, de impor o seu pensamento ao outro. E, sem me ater detalhadamente no conteúdo do texto, até porque, como já dizia Adam, um texto releva, a maior parte das vezes de vários géneros, não andarei muito longe da verdade se disser que o ato de fala indireto deste artigo de opinião se englobará, por certo, num macroato da fala: o pedido. Que, em política, se poderá resumir neste enunciado de natureza injuncional: votem em mim. Tanto mais que eu sou diferente e melhor do que os meus antecessores, como acabo de demonstrar.

E, note-se, falei apenas da forma. Quer dizer, das condições de enunciação do texto. Que são determinantes para a global interpretação do discurso. Ficou a ganhar o Secretário-geral do Partido Socialista, cujo eu tem notoriamente mais força ilocutória do que um relato feito na terceira pessoa. Mas, como ficou dito acima, trata-se de uma voz coletiva – a dos socialistas – sem contar com algumas vozes dissonantes no seu próprio seio... Quer isto dizer que se trata de um eu que não representa o pensamento de um cidadão anónimo ou de um qualquer comentador político (um politólogo, como hoje se diria…), mas de um político que é parte interessada numa certa visão do mundo. Fica a perder o JN, cujos critérios editoriais fazem, ao que parece, tabula rasa, do seu leitor. E que, definitivamente, confunde comentário político com política ativa.

Se terá sido um revés para o leitor médio do JN é o que o futuro ditará… 
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Artigo de opinião de António José Seguro publicado no Jornalde Notícias [24 de dezembro de 2011]

O Governo acaba de anunciar que o défice orçamental deste ano é de 4%, abaixo dos 5.9% acordados no Memorando da Troika. Isto quer dizer que o Estado arrecadou em receitas (essencialmente por via do fundo de pensões da banca) mais de 3 mil milhões de euros do que seria necessário. Como sempre afirmei, não havia necessidade de retirar metade do subsídio de Natal aos trabalhadores e reformados, nem aumentar o IVA sobre a luz e o gás.
Esta sobretaxa, no montante de 840 milhões, é uma opção política errada do Governo, aumentando, sem necessidade, os sacrifícios sobre os trabalhadores e os pensionistas. Aumenta ainda mais a austeridade que conduz à recessão da economia e ao empobrecimento do nosso país.
Discordo desta dose cavalar de austeridade. Desde o início do meu mandato que venho defendendo um outro caminho para Portugal. Um caminho com disciplina e rigor orçamental, é certo, mas que promova o crescimento económico e o emprego.
Sim, só com emprego e crescimento económico poderemos sair desta crise. Só criando riqueza e emprego poderemos gerar os recursos para pagar as nossas dívidas e financiar o Serviço Nacional de Saúde, a Escola Pública e a Segurança Social.
Não fiquei pelas palavras. Apresentei propostas concretas das quais destaco a linha de crédito (do Banco Europeu de Investimento) de 5000 milhões para apoiar as pequenas e médias empresas; o reforço e adequação dos seguros de crédito para a exportação de produtos portugueses e a redução, para metade, do IRC sobre lucros até 12.500 euros. As nossas empresas estão sem liquidez para comprarem matérias-primas e continuarem a produzir. Conheço empresas que têm encomendas para entregar no próximo ano e não conseguem financiar-se. Esta situação é incompreensível.
Ao mesmo tempo, a União Europeia tem de deixar de andar a correr atrás do prejuízo e tomar decisões consistentes que ponham ordem nos mercados e promovam o emprego e o crescimento económico. Desde que fui eleito líder do PS que tenho insistido na importância da Europa contribuir para a saída da crise.
Também aqui apresentei propostas concretas, das quais destaco: um papel mais activo do Banco Central Europeu, nomeadamente com a emissão de moeda que permita apoiar as empresas, mantendo e criando emprego; a emissão de eurobonds para financiar investimento público de qualidade e mutualizar parte da dívida soberana dos países com a consequente baixa da taxa de juros; políticas orçamentais robustas e harmonização do sistema fiscal na zona euro.
Não podemos perder mais tempo. A Europa ou muda ou morre, como tantas vezes afirmei. Bati-me, e bato-me, contra o directório europeu Merkel-Sarkozy e insisto na necessidade do actual Governo ter voz própria e activa na defesa dos interesses de Portugal.
É esta a postura do PS. Uma oposição firme, responsável e construtiva.
Bem sei que alguma pessoas confundem oposição com o mero protesto e o estar sempre contra. Discordo. Essa forma de fazer oposição está totalmente desacreditada e afasta as pessoas da política. Os portugueses querem respostas para os seus problemas concretos. E é nos portugueses que penso quando faço política. É por isso que, em todos os momentos, coloco o interesse nacional acima dos interesses partidários. E verifico, com satisfação que, cada vez mais, há portugueses a aproximarem-se do PS.
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© Manuel Fontão

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