2011/12/26

A formulação do pedido

Como sabemos, existem inúmeras formas para pedirmos a alguém, por exemplo, para fechar uma simples porta, sendo que umas serão sentidas como mais ameaçadoras do que outras. Observe-se, pois, o corpus que se segue:

(1) Irra! Esqueces-te sempre de fechar a maldita porta! [CONSTATAÇÃO + INSULTO]
(2) Esqueces-te sempre de fechar a porta! [CONSTATAÇÃO + CRÍTICA]
(3) Deves fechar a porta! [ASSERÇÃO + OBRIGAÇÃO]
(4) Fecha a porta! [ORDEM]
(5) Ordeno-te que feches a porta! (ORDEM + PERFORMATIVIDADE)
(6) Fecha a porta, se faz favor! [ORDEM + ATENUANTE]
(7) A porta estava fechada, creio eu… [CONSTATAÇÃO + CRÍTICA]
(8) Importas-te de fechar a porta? [ORDEM + QUESTÃO]
(9) Importar-te-ias de fechar a porta? [ORDEM + QUESTÃO]
(10) Importar-te-ias de fechar a porta, por favor? [ORDEM + QUESTÃO + ATENUANTE]
(11) Fazes-me o favor de fecha a porta? [ATENUANTE + PEDIDO]
(12) Seria pedir-te muito, se te propusesse que fechasses a porta? [PREFIXO + SUGESTÃO]
(13) E se fechasses a porta? [SUGESTÃO]
(14) Muito gostaria que tu fechasses a porta!.. [ASSERÇÃO + DESEJO]
(15) Há uma corrente de ar aqui… [ASSERÇÃO + SUGESTÃO]
(16) As portas têm um duplo batente… [ASSERÇÃO + SUGESTÃO]
(17) Estas conferências costumam ser realizadas à porta fechada… [ASSERÇÃO + CRÍTICA + SUGESTÃO]

E a lista não se encontra, obviamente, fechada, pois o locutor tem à sua disposição um vasto leque de formulações, quer diretas, quer indiretas, sendo que, neste último caso, os atos podem ser, ainda, subdivididos em indiretos convencionais e em indiretos convencionais, cuja natureza aberta se poderá, em última análise, explicar pelo facto de este ato ilocutório ameaçar o território do alocutário, dado que a formulação de um pedido implica sempre uma incursão.

Mas, afinal de contas, em que é que consiste um pedido? Ora, diremos que estamos perante a formulação de um pedido sempre que um determinado locutor produz um enunciado que tem como objetivo pedir ao seu alocutário a realização efetiva de um qualquer ato de natureza extralinguística, isto é, dotado de um efeito perlocutório particular.

De resto, e como se pôde observar acima, as formulações indiretas do pedido, quer se trate das fórmulas convencionais, quer se trate das não convencionais, não obedecem a um esquema rígido e estanque, mas antes, admitem uma leitura escalar que se situará algures entre [± convencional]. Com efeito, os enunciados infra, que, em português, funcionam como pedidos indiretos convencionais, isto é, como tropos mais ou menos lexicalizados, que obedecem, em último recurso, a uma variação semântica teoricamente infinita:

(18a) Podes fechar a porta?
(18b) Poderias fechar a porta?

(19a) Eu quero que feches a porta.
(19b) Eu queria que fechasses a porta?

(20a) Eu quero que feches a porta.
(20b) Eu queria que fechasses a porta.

(21a) ? Gosto que feches a porta.
(21b) Gostaria que fechasses a porta.

(22a) Tu queres fechar a porta.
(22b) Tu querias fechar a porta.

Como nos apercebemos, há, na verdade, expressões que são mais aceitáveis do que outras (e isto por razões semânticas). Tal facto não impede, todavia, que não se possa resumir a formulação do pedido indireto convencional a três casos de figura, a saber:

(i) estrutura interrogativa colocada numa das pessoas do discurso, acompanhada do verbo modal poder ou querer (quer no indicativo, quer no futuro do pretérito), significando, nesta perspetiva, a capacidade ou a vontade do alocutário em realizar o ato requerido:

(23a) Podes fechar a porta?
(23b) Podeis fechar a porta?
(23c) Pode fechar a porta?
(23d) Podem fechar a porta?

(24a) Queres fechar a porta?
(24b) Quereis fechar a porta?
(24c) Quer fechar a porta?
(24d) Querem fechar a porta?

(ii) estruturas interrogativas colocadas numa pessoa do discurso, significando a possibilidade de o alocutário realizar o ato requerido, na circunstância, o de fornecer um qualquer objeto material ou uma informação:

(25a) Tens tabaco?
(25b) Tens horas?

(iii) Asserção colocada na primeira pessoa, acompanhada do verbo gostar (no imperfeito do indicativo ou no futuro do pretérito) ou querer (no presente e/ou imperfeito do indicativo ou no futuro do pretérito), significando o postulado da condição de sinceridade (isto é, excluindo, na ocorrência, que o locutor coloca uma mera interrogação):

(26a) Gostava que fechasses a porta.
(26b) Gostaria que fechasses a porta.
(26a) Quero que feches a porta.
(26b) Queria que fechasses a porta.
(26c) Quereria que fechasses a porta.

Ter-se-á reparado que os casos (i) e (ii) se prendem com as formulações ditas other-oriented, ao passo que a última (iii) é self-oriented. Por outro lado, talvez não seja inútil acrescentar que, em caso de reação positiva por parte do alocutário, mais importante do que produzir um enunciado verbal será, como é óbvio, a realização do ato perlocutório, na circunstância, o facto de fechar realmente a porta. Aliás, a reação verbal, a existir, soará, em último recurso, como uma redundância do ato perlocutório, como se confirma pela cena dialogal infra:

(27) – Deve entregar-me o relatório dentro de uma hora! – vociferou o diretor geral.
       – De acordo, sr. diretor – retorquiu a secretária.
       – Não lhe pedi a sua concordância na matéria. Dei-lhe uma ordem! – redarguiu o diretor.

De resto, o mesmo se passa com as questões do tipo (iii), as quais requerem, também, a passagem obrigatória ao ato requerido, sendo que qualquer tentativa de verbalização se revela, de alguma forma, incongruente:

(28) Loc. A.: Tens cigarros?
       Loc B: ? Tenho.

(29) Loc. A: (na rua) Sabe onde fica a farmácia mais próxima?
       Loc. B (na rua): ? Sei.

(30) Loc. A: Conhece uma rua chamada Santo António dos Milagres?
        Loc. B: ? Conheço.

Uma última nota para referir que os procedimentos linguísticos que servem de suporte à formulação indireta convencional podem, como aliás ficou dito supra, encerrar, também eles, um número infinito de variações, o que permite, como é óbvio, que se entre, mutatis mutandis, na formulação indireta não convencional, como atestam os enunciados que se seguem:

(31) Impaciento-me, minha querida, quando não recebo notícias tuas…
       [ato indireto convencional: Minha querida, podes escrever-me mais vezes?]

(32) Se soubesses como fico contente quando me ligas…
        [ato indireto convencional: gostaria que me ligasses mais vezes.]

(33) A tua voz é um bálsamo…
        [ato indireto convencional: quero ouvir a tua voz...]

(34) Não sei se consigo aguentar até ao Natal…
        [ato indireto convencional: quero ver-te o mais depressa possível...]

Como se pode verificar, o ato indireto não convencional depende, em última análise, da capacidade criativa do locutor, e, em certo sentido, constitui um autêntico exercício de estilo. Não se infira, contudo, dos exemplos (31-34) que o procedimento se aplica apenas à coita ou ao código amoroso, pois que o ato indireto não convencional se encontra nos mais variados domínios das trocas verbais, mesmo as mais prosaicas. Com efeito, o enunciado (34) pode perfeitamente ocorrer entre dois interlocutores, em que o locutor (um professor, por exemplo) pretende significar ao seu alocutário (a um grupo/turma, por exemplo) o cansaço acumulado ao longo do seu ofício, e, consequentemente, a necessidade de descanso. Assim, e nesta interpretação, (34):

(34) Não sei se consigo aguentar até ao Natal…
        [ato indireto convencional: podem facilitar-me um pouco mais o meu trabalho?]

(35) Creio que vou chegar atrasado ao encontro…
        [ato indireto convencional: pode resumir-se a preceito?]

Conclusão

Neste breve excurso, e a partir de um corpus de natureza escalar, definiu-se, primeiro, a formulação do pedido como um ato incursivo, e, numa segunda etapa, fez-se a delimitação entre dois subtipos, a saber, o ato indireto convencional, isto é, aquele que configura um tropos lexical (logo, o enunciado/tipo surge, obviamente, associado ao seu valor de uso…) e o ato indireto não convencional, ou seja, aquele que é, em primeira instância, imputável às idiossincrasias lexicais próprias do locutor, que, como tal, recorre a estruturas lexicais não cristalizadas (logo, o enunciado/ocorrência prende-se, como é evidente, com o seu valor de emprego). 

Em seguida, foi elaborada uma tipologia dos atos indiretos convencionais e cedo se percebeu que os problemas de fronteira entre os dois subtipos de atos carecem de afinação, pelo que a sua tipificação configura aquilo que O. Ducrot (cf. Echelles Argumentatives) designa de gradient. Não obstante este estado de coisas, é possível, porém, delimitar, com algum rigor, a maior ou menor convencionalidade do pedido, mercê do maior menor investimento linguístico do locutor no seu ato de enunciação. Assim, no primeiro caso (i. e., no ato indireto convencional) o locutor entende partilhar com o seu alocutário a mesma enciclopédia (códigos culturais, ferramentas metalinguísticas, etc.), ao passo que, no segundo caso (no ato indireto não convencional), o locutor constrói o seu enunciado com base nas suas próprias idiossincrasias, escapando, por conseguinte, aos metarrecursos disponíveis para o efeito. Aliás, é graças a este traço distintivo que podemos recorrer a toda uma série de estratégias de comunicação, como por exemplo, a do elogio, sobretudo quando este vale indiretamente para a asserção assente no desejo de possuirmos o objeto desejado/elogiado, como é o caso do enunciado (36):

(36) Tens uma bicicleta toda moderna!
         (= posso experimentá-la = podes emprestar-ma?)


Atividades didáticas: sugestões

1. A partir de Postal dos Correios dos Rio Grande, identifique os atos indiretos convencionais e não convencionais:

Querida mãe, querido pai. Então que tal?
Nós andamos do jeito que Deus quer
Entre os dias que passam menos mal
Lá vem um que nos dá mais que fazer

Mas falemos de coisas bem melhores
A Laurinda faz vestidos por medida
O rapaz estuda nos computadores
Dizem que é um emprego com saída

Cá chegou direitinha a encomenda
Pelo ‘expresso’ que parou na Piedade
Pão de trigo e linguiça p’ra merenda
Sempre dá para enganar a saudade

Espero que não demorem a mandar
Novidades na volta do correio
A ribeira corre bem ou vai secar?
Como estão as oliveiras de candeio?

Já não tenho mais assunto pra escrever
Cumprimentos ao nosso pessoal
Um abraço deste que tanto vos quer
Sou capaz de ir aí pelo Natal…

2. Recorrendo às técnicas da escrita criativa, explore os possíveis atos indiretos não convencionais a partir do enunciado (37):

(37) Espero que não demorem a mandar/ Novidades na volta do correio [direto]
(…)
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Clique aqui para ouvir o Postal dos Correios [mp3]
© Manuel Fontão

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