2011/12/10

A Esperança está onde menos se espera


Lourenço tem 15 anos e é feliz: é o melhor aluno de um dos mais exclusivos colégios particulares de Cascais/Sintra, tem uma banda e é popular entre as raparigas. O pai, Francisco Figueiredo, é um treinador de futebol que começa a construir uma carreira de sucesso, e, apesar de treinar uma equipa modesta, qualificou-se para a final da Taça de Portugal. Mas Francisco é um homem de princípios e não quer ganhar a qualquer custo, o que lhe vai sair caro. É despedido do clube e nenhuma outra equipa o contrata. Todos lhe fecham as portas. E, mês após mês, o dinheiro vai-se esgotando. Lourenço tem de deixar o Colégio e passa a frequentar uma Escola Secundária oficial cujos alunos são predominantemente da Cova da Moura. Lourenço, ao mesmo tempo que luta para se integrar numa nova e dura realidade, vai também ajudar o Pai a recuperar a dignidade perdida...


Análise crítica

O argumento centra-se no seio de uma família de sucesso, que, de repente, se vê a braços com um problema que afeta, de resto, as sociedades do nosso tempo: o desemprego. Claro que, para Francisco Figueiredo, um promissor treinador de futebol que consegue levar uma modesta equipa dos distritais à final da Taça de Portugal, tudo seria fácil, demasiado fácil, aliás, se porventura, não fosse um homem às direitas. Mas a ambição desmedida dos nossos tempos, não se compagina, de todo, com a integridade de uns quantos, sobretudo, se tivermos em conta a falta de honestidade que grassa no submundo do futebol. E o obscuro presidente do seu clube, comprometido com estranhos jogos de bastidores, não lhe perdoará a fraqueza de ter tentado repor uma injustiça futebolística, na ocorrência, uma grande penalidade inexistente, mas que foi, por certo, previamente gerida nos corredores da corrupção, quiçá, paga por antecipação e por ajuste direto. Em todo o caso, Francisco Figueiredo não resistirá aos sucessos entretanto obtidos, pelo que o desenlace é inevitável: o promissor treinador verá extinguir-se, definitivamente, as luzes do palco.

Ora, face a esta nova situação, Francisco Figueiredo vê-se irremediavelmente compelido a fazer alguns importantes reajustamentos nos gastos domésticos, mas a sua intervenção é pouco compreendida intramuros, no caso em apreço, pelo seu filho Lourenço e, em parte, pela sua esposa Helena. Assim, e sem dinheiro para pagar as propinas do estabelecimento de ensino privado, o ex-treinador decide transferir o seu filho Lourenço para uma escola pública da Amadora, cujo ambiente se revelará, no imediato, problemático e pouco propício ao desenvolvimento do processo de ensino/aprendizagem do jovem.

É então que começa uma autêntica luta pela sobrevivência. E, nesta matéria, cada personagem interpretá-la-á a seu modo. Com efeito, Helena, impotente também ela, para prover às despesas do filho e, por que não dizê-lo, interiormente revoltada com o estado de coisas, decide emigrar. Por conta própria e por despeito para com um marido que, todavia, lhe terá proporcionado uma vida confortável. Na bagagem, leva, de resto, a desilusão de uma aposta perdida, pois Lourenço, ainda que em litígio aberto com o pai, não prescindiu do seu habitat, designadamente, do seu círculo de amigos. Assim, Helena, tal como os ratos de um navio em risco de naufrágio, é a primeira a descartar-se. Claro que o pretexto da esposa e da mãe é, de certa forma, inquestionável: trata-se de lutar, ou melhor, de reconquistar o fasto de outrora. Razão acrescida, na minha opinião, para ficar junto dos seus. Francisco, esse, tenta desesperadamente encontrar um outro emprego, isto é, uma fonte de receitas que, por magra que seja, lhe permita pagar as faturas que lhe vão chegando diariamente à caixa do correio. Na alma ferida, o homem percebe o dedo acusador do seu filho, o sorriso fechado da mulher e o desconcerto do mundo – que acaba por penalizar aqueles que, curiosamente (ou talvez não!...) dão provas de integridade, de honestidade e de consciência. E, por fim, Lourenço, o adolescente, paga com o seu próprio sangue o complexo processo de integração numa escola em que o crime e a rebeldia parecem andar de mãos dadas. E ao sabor dos caprichos dos líderes juvenis. Porque nisto de territórios juvenis, marcados por redes ocultas de poder, quem quiser comprar a paz social deve sacrificar às hierarquias a sua personalidade, os seus ideais, as suas virtualidades. Aliás, Lourenço, o jovem caprichoso e arrogante de outrora, paga muito mais nesta sua fase de aprendizagem empírica: doravante, correm por sua própria conta e risco as despesas relativas à depressão profunda do pai. Porque Francisco, esse, perdeu toda a sua vontade de viver. Porque Francisco ficou inexoravelmente só no meio desta enorme tormenta. Porque Francisco, o pai, se fixou definitiva e patologicamente num único ponto luminoso da sua existência remota: as imagens de um Lourenço, ainda pequeno e trôpego, a brincar com a bola e de uma bola, sempre redonda, a fintar o corpo trôpego e pequeno do seu Lourenço. Ora, como um mal raramente vem só, mesmo esse ponto de luz viria, também ele, a extinguir-se: os senhores de negro, porque negras são as intenções dos penhores, vieram confiscar o único objeto significante que Francisco ainda possuía: o velhinho e mágico vídeo. Acabou-se a imagem do filho – não deste, mas do que havia sobrado. Acabou-se o sonho – restou o largo espectro de um infindável pesadelo. Que mais temer, quando já perdemos tudo na vida?

Há a esperança. A esperança de um filho que se fez homem. Um homem que cresceu provavelmente antes do seu tempo. Chama-se Lourenço. E o filho sabe que o pai precisa desesperadamente dele. Lourenço compreende que ficou com o pai nos braços. Lourenço percebe, de súbito, o dramatismo da situação, razão pela qual trocará o seu computador – o seu último artefacto significante – por comida. Que não para ele, que o jovem, esse, lá vai iludindo o estômago graças a alguns subterfúgios próprios da sua idade. Mas, pasme-se, para o seu pai…que, entretanto, terá perdido toda a noção do tempo e do espaço.

Face ao exposto, parece óbvio que a riqueza deste filme de Joaquim Leitão reside na sua diversidade temática. Com efeito, em causa está, por exemplo, a cosmovisão de uma política educativa que não se rege por critérios sérios e rigorosos no que toca ao todo disciplinar, isto é, que não deixa espaço para o pleno desenvolvimento da personalidade do indivíduo, que é, por natureza, plural e heterogénea. E, neste capítulo, o que se vislumbra, vezes amiúde, é que o perfil do jovem educado e cortês, quiçá, culto, tem de se deixar corromper às garras da tirania juvenil, sob pena de exclusão, de ridicularização, de violência física. Em suma, e fazendo jus a uma célebre frase: quem não é por nós, é contranosco (com perdão da palavra amalgamada…). Dito de outro modo, assiste-se, no mundo coetâneo – o nosso –, a uma verdadeira perversão dos valores, ou se se preferir, a um nivelamento por baixo dos valores axiológicos, de que resulta uma apologia mais ou menos tácita da lei da mediocridade – e isto sob a complacência do todo institucional…

Por outro lado, o filme também coloca a tónica na questão – crucial – do relacionamento interpessoal. Cite-se, um pouco ao acaso, a dificuldade de comunicação entre pai e filho, cada um deles centrado na sua esfera de interesses individuais. Cite-se, por exemplo, a dificuldade de comunicação entre os cônjuges: Francisco que não consegue convencer Helena da necessidade de alguns cortes na despesa e Helena que se revela incapaz de perceber a gravidade da situação. Cite-se ainda – e de cor – a incomunicabilidade entre amigos, sobretudo, quando o que parece estar em jogo é menos a questão da individualidade dos jovens, tomados isoladamente, do que um certo espírito de pertença e uma ideia vaga e confusa de fidelidade mais ou menos canina a um determinado grupo. Cite-se, enfim, os diálogos curtos, ou, para ser mais preciso, as intervenções monossilábicas dos jovens namorados, que, no seu palco de emoções, deixam cada vez mais espaço ao mimo (linguagem não-verbal) ou à linguagem paraverbal. Dito por outras palavras, tudo se resume, neste âmbito, a um processo cada vez mais mediato e mediatizado pela máquina, neste sentido que as palavras transformadoras e performativas do código amoroso são, cada vez mais, evitadas no confronto direto, isto é, cara-a-cara, para, posteriormente, serem teleguiadas pelas redes sociais, de forma puramente remota e assíncrona. Aliás, um tal modus operandi configurará, por certo, algo de patológico, como doentio será, por exemplo, o ato sexual mediatizado pela máquina, quando do outro lado da estrada estará, porventura, o objeto do desejo…

Mas não é tudo. Na realidade, o filme de Joaquim Leitão alarga o tema da incomunicabilidade às classes sociais, as quais parecem viver numa guerra civil mais ou menos permanente, ou, pelo menos, prontas a fazer irromper, ao menor atrito, o avantesma do racismo. Contudo, nesta matéria – como em tudo na vida –, não me parece que a descrição do real se compagine com uma visão dicotómica e maniqueísta do tecido social, até porque, a meu ver, os algozes não estarão todos, por certo, do mesmo lado da barricada, assim como as vítimas, essas, também não estarão todas, decerto, devidamente alinhadas na outra margem. Com efeito, o facto de o lojista da esquina, por exemplo, ter sido executado pelo fisco, tal medida pode prender-se, exclusivamente, com a infração do contribuinte e isto independentemente de o infrator ser branco, vermelho, negro ou amarelo. Ora, o que o filme deixa claramente perceber é que o (pseudo)argumento étnico, por um especioso mecanismo psicológico assente na chantagem emocional, se sobrepõe, por vezes, à análise esclarecida e rigorosa dos factos.

Por último, importa registar toda uma gama de temas que atravessam diagonalmente o filme e que, no fundo, decalcam os problemas candentes das sociedades contemporâneas, a saber, o desemprego, a crise, a subversão de valores, etc. Razão acrescida para se perceber que o projeto fílmico atingiu amplamente o alvo, na circunstância, o desafio colocado ao espectador, que, ao se rever nas múltiplas situações do seu quotidiano, surge investido de uma nova responsabilidade: a de repensar o mundo em que vive. E do qual não se pode subtrair.

Claro que o filme encerra alguns aspetos menos positivos, a saber, a sua sonoplastia e um certo ruído discursivo. Com efeito, e no que toca ao primeiro aspeto, notar-se-á que os efeitos sonoros traem, vezes amiúde, a sua função cinematográfica, na medida em que não reforça - como deveria - a naturalidade da sua produção dialogal e dialógica. Já no que toca ao segundo aspeto, importa registar que a mensagem, pela sua natureza abrangente e axiomática, não precisaria de ser, aqui e ali, tão enfática e reativa, até porque o contexto é determinante para a construção do sentido. Contudo, o filme não escapa a alguns estereótipos do cinema português, designadamente, um certo excesso de propósitos, alguma redundância semântica, quando se pediria, muito justamente, o contrário, isto é, que o espectador fosse, tão-só, confrontado com uma indelével insinuação, como por exemplo, uma palavra sussurrada, um gesto obliterado, tanto mais que o cinema – como aliás a literatura – vale pelo seu poder de sugestão, ou, dito por outras palavras, no discurso ficcionado, mais importante do que aquilo que é (foi) dito será, com certeza, aquilo que não o é (foi)…



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© Manuel Fontão

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