2011/12/18

Cesária Evora: biografia ficcionada... ou talvez não.

Querido Afonsinho,

Hoje, queria apenas dizer-te que tive um sonho. Claro que é de alguma forma invulgar, isto de vir, agora, incomodar-te com os meus sonhos, mas já não concordo contigo, quando dizes que os homens não devem confessar os seus devaneios mais íntimos na praça pública. Omessa! Então porquê? Os homens, hoje, valem pelo que dizem, e, tal como no tempo do nosso mui estimado Padre António Vieira, muitos deles só ganham notoriedade por fazerem, justamente, o contrário daquilo que pregam. Mas isso seria uma mui triste e sinistra história, que envolveria os políticos da nossa era, inclusive o nosso Pedrito português de Portugal (perdoar-me-ás, mas coelho… só o da caçarola) e, dado que o tempo urge, porque o tempo urge sempre e invariavelmente, pois lá terá de ficar para uma próxima oportunidade…

Pois bem, hoje, sonhei que Cesária Évora não havia, definitivamente, morrido. Sonhei que a mulher que nascera nos idos de 1941, na cidade de Praia, tinha simplesmente saído para dar mais um concerto. Ao ritmo das mornas. Ou ao som das coladeras. Sonhei... Sonhei que a diva se fora encontrar, pés descalços, o corpo vergado, com o seu pai, Justino da Cruz, o homem que lhe terá incutido o gosto pela música. E, no meu sonho, havia tons de um cavaquinho comprado numa qualquer rua estreita da cidade. Havia vagos acordes de um violino que rivalizavam com a fervura das panelas de uma qualquer cozinha de colonos. Havia timbres lamuriosos e lentos de um violão perdido nas trevas do tempo. De repente, Afonsinho, pareceu-me mesmo ouvir a voz da reservada D. Joana, a sua mãe, uma voz rouca, áspera, pedagógica. Era? Não era? Ao sonho o que ao real não pertence, meu querido Afonsinho. E ao real o que ao sonho se subtrai - tal é a parte do pesadelo que calhou em sorte ao comum dos mortais…

Depois, e sem dar por isso, entrei, ó Afonsinho, numa espécie de no man’s land, um edifício negro e silencioso, e, num ápice, pareceu-me ter vislumbrado a pobre Cize abandonada a um canto, o olhar esgazeado, a nuca pendente, a voz petrificada. Seria a recordação dos seus quatro irmãos que, então, a apoquentava? Seria a saudade do pai que, nesse instante, a afligia? Seria a ausência da voz confidente da mãe, que, naquele momento, a mortificava? Seria, em definitivo, os rigores da disciplina da avó, habituada às regras conventuais, que a mantinham, então, em moratória? E que sabemos nós dos nossos próprios sonhos, não é, meu caro Afonso? Ora, que são sonhos, pois então! Sonhados. Que surgem, espraiados, nas agrestes colinas da noite. E que se esvaem, porosos, por entre as garras de um real que, a cada dia, se alevanta… (sim, meu amigo, recorro, aqui, à prótese, apenas para evocar a épica camoniana. Questão de estilo, certo, mas, como calculas, no registo escrito - como no oral - tudo é pertinente e significativo...).

Assim é, meu caro Afonsinho! Hoje, sonhei… Sonhei com a presença de Lela, acompanhado dos sons quentes da sua música. Entrevi o vetusto bairro do Lombo, lá onde as tropas portuguesas estavam, então, acantonadas (Pronto! Concedo-te a reserva, por mínima que seja: era, de facto, apenas um punhado de mancebos que iam, ao que parece, defender a madre pátria - que os mares pátrios estavam literalmente dominados pela armada cabo-verdiana, apenas comparável à saga dos teus cercos...). Como te ia dizendo, meu mui nobre e mui leal senhor, sonhei com o longínquo Mindelo. E, de súbito, pareceu-me ter vislumbrado o Gonçalves, o Gregório, aquele homem do teatro de rua com quem a menina, aos 16 anos, fez, pela primeira vez, dueto. E, repara, afigurou-se-me mesmo, por entre as fímbrias da cerração, ter avistado o Eduardo, o homem que a iniciara nos vários estilos musicais cabo-verdianos. Que lhe destilara, em pequenas doses e de bar em bar, os sons monocórdicos das mornas. Que lhe incutira, na alma ainda ingénua, aqueles sons pungentes que convocam a tristeza, a mágoa, o desejo de almejar o impossível.

Sonhei, ainda, com os anos de 1975, altura em que Cabo Verde adquirira a sua independência outrora subtraída. Sonhei com um país novo e com uma nova intérprete. Sonhei com a importância de José da Silva, o homem que levaria a diva dos pés nus a Paris. Sonhei com o Grammy que lhe fora atribuído em 2004, no âmbito da world music contemporânea. Sonhei com a medalha da Legião de Honra com que a França a distinguira. Sonhei com os palcos que Cesária pisou por esse mundo fora. Desde Paris a Tel-Aviv. Desde Lisboa ao Rio de Janeiro…
Que mais sonhei? Para te dizer a verdade e toda a verdade, pareceu-me ter percebido, no horizonte largo e húmido, os roncadores do Congelo. Uma algaraviada de vozes dissonantes. O toque frustrado de uma quantas magras moedas a cair, em pequenos gritos de desespero, numa provecta mesa de cabeceira. O ruído surdo de uma revolta abafada. E, neste particular, fui confrontado com o valor histórico da minha visão fantasmagórica: os dez anos de silêncio e de ostracismo a que Cesária fora ostensivamente votada.

E, ao acordar, meu Afonsinho bonito, percebi que, hoje, se iria falar muito de Cesária Évora. A bem de uma certa consciência. E em nome de uma certa lusofonia. Ó meu Afonso querido, nem de propósito: para que servirá aquela associação de benfeitores, abrigada sob o nome pomposo de CPLP? Servirá apenas de rampa de lançamento internacional de algumas importantes figuras, como por exemplo, o nosso também mui venerando José Eduardo dos Santos? Servirá somente de plataforma de estranhos compromissos, que o mesmo é dizer, de placa giratória por onde circulam tráficos de influências (quando não de corrupção ativa e passiva), de lavagem de dinheiros públicos e de institucionalização de eixos políticos mais ou menos ditatoriais? Não achas que a CPLP deveria, antes, apoiar a cultura de inspiração lusófona, e, no caso em apreço, a música de inspiração tradicional e popular? Ah! Isso é como a beleza – que não se põe à mesa. Diria mais, meu caro, já que gostas de provérbios: isso é como os cargos – que, na sua maioria, são encargos, ou seja, não cabem à mesa, dado que, à falta de dinheiro, sobra trabalho...

Ah! Vês como o real e o sonho andam, afinal de contas, sempre de mãos dadas! Como? Então não reparaste no conteúdo do meu sonho, meu distraído? Parece impossível, homem de Cristo e vidente de Ourique! Logo tu, que foste capaz de perceber a figura colossal de Cristo, e, tal como um lince, vislumbraste - e mui a propósito! - as cinco chagas com as quais o nosso PM (que, como calcularás, não significa Polícia Militar, pois constituiria um abominável anacronismo, mas, isso sim, Primeiro Ministro) continua a crucificar - e mui a propósito! - o povo luso da antiga metrópole! Parece-me que não és lá muito dotado em textos de natureza biográfica, ó Afonso benquisto! Talvez devido ao facto de as pessoas só terem, nos tempos que correm, evidência empírica - como parece que têm - no post mortem. Como tu, por exemplo. E como a nossa divina Cesária. E digo nossa em nome de uma certa ideia de lusofonia – que não a da CPLP, claro.

O teu mui leal e servidor,

Manezinho da Urzelina*

Post scriptum: falei-te de CPLP e - ai a minha cabeça! - esqueci-me de te dar a hiperligação que é uma espécie de ligação remota e teleguiada que vai direitinho ao sítio. Ao cerco, se quiseres. Ao covil. À toca, pronto - que é uma maneira de lá colocar todos os coelhos falsamente mansos que invadiram o país...
E, claro, quando descobrires para que serve a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, que é assim que se chama, em letras de cristão, a tal CPLP, passa-me a informação, que eu prometo não citar tão nobre e leal fonte.

* Cronista lusodependente, ex-combatente das pequenas e mínimas causas, ex-republicano tetraconvicto, ex-sem-abrigo e sem-terra, com residência provisória e clandestina (procurar, sff, off-shores à la mode...), para fugir à máquina centrifugadora do magoministro Gaspar, responsável pela Agência Nacional dos Impostos sobre presépios finisseculares...
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Glossário:

A morna, como se sabe, é um género musical e de dança típica de Cabo Verde. Com efeito, tradicionalmente interpretada, recorrendo a instrumentos acústicos bastante variados, a morna reflete, no fundo, a realidade insular do povo de Cabo Verde, o romantismo intenso dos seus trovadores e o amor à terra (a necessidade de partir e o desejo inexorável de ficar).

Assim, não surpreende que este estilo musical seja o género que melhor consubstancia a identidade do povo cabo-verdiano e não incorro, por certo, em qualquer tipo de exagero se afirmar que a morna constitui um verdadeiro símbolo nacional, a exemplo do tango na Argentina, da rumba em Cuba, do samba no Brasil ou do fado para Portugal. Com efeito, alguns géneros musicais de Cabo Verde podem ser mais ou menos apreciados pelos naturais conforme a idade do ouvinte, a época, a ilha de origem, o gosto pessoal, mas a morna, essa, é o único género que consegue ser largamente transversal a todos os grupos etários.

De resto, nos últimos anos, a morna foi amplamente divulgada pelos quatro do mundo por vários artistas, mas a embaixadora deste estilo musical, foi, sem sombra de dúvidas, Cesária Évora.



© Manuel Fontão

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