2011/12/08

As máximas conversacionais


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2. As regras de cortesia
  
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3. As máximas conversacionais

Um outro mecanismo regulador das trocas verbais prende-se com o facto de o interlocutor observar um conjunto de regras, ou melhor, de metaprincípios que regulam a cena dialogal e que se encontram especificados num certo número de máximas conversacionais [cf. Paul Grice], as quais, como se sabe, se contrapõem às máximas convencionais, ou seja, àquilo que é linguisticamente realizado no e pelo enunciado. Um exemplo ilustrativo deste tipo de fenómenos será aquele que se apresenta infra:

(10) Fiquei surpreendido que o Adalberto tenha superado satisfatoriamente a prova de exame.

em que o posto (i. e., aquilo que é efetivamente realizado pelo ato de fala) é que /o Adalberto superou a prova de exame/, mas a implicitação, essa, aponta, justamente, num sentido de sinal contrário (pressuposto), a saber, que /Adalberto não é um bom aluno/, o que significa, pois, que, a implicatura conversacional se situa ao nível da orientação argumentativa que o locutor entende emprestar ao seu enunciado.

Face ao exposto, parece evidente que as implicações conversacionais ativam, não apenas o metaprincípio da cooperação, mas também as máximas conversacionais. É, muito justamente, o que se passa quando se fala da máxima de quantidade, que, como se sabe, impõe que sejamos tão informativos quanto o necessário. Com efeito, quando, no nosso quotidiano, alguém nos coloca perguntas básicas, como por exemplo, (11) as horas ou (12) o lugar onde vivemos, não nos passa pela cabeça tomarmos o conteúdo proposicional à letra, produzindo comentários do género (11a), (12a) ou (12b):

(11) Loc. A (na rua): Tem horas?
(11a) Loc. B: *Tenho.

Todavia, o comentário pode ser recuperado, se, porventura, A for a funcionária de uma biblioteca e que B, utente, tenha ultrapassado já o horário de trabalho do estabelecimento. Neste caso, o enunciado (10b) poderá configurar uma crítica (uma marca FTA) dirigida ao consulente, ao passo que (10c) pode ser entendido como uma FTA dirigida à referida funcionária:

(11b) Tem horas? (i. e., despache-se, vá embora!)
(11c) Tenho (i. e., estou consciente do facto, mas pretendo acabar a tarefa...).

(12) Loc. A: Onde vives?
(12a) Loc B: ? Em Portugal.
(12b) Loc. C: ?? Na Europa.

Deve ter-se, todavia, presente que a infração desta regra – como das restantes – não é, como se poderia à primeira vista pensar, puramente gratuita, mas, antes, passível de um reinvestimento cognitivo, isto é, o comentário produzido deve ser objeto de um cálculo interpretativo novo. Com efeito, a questão que se coloca é, por conseguinte, indagar acerca da razão de tal resposta. Do mesmo modo, o enunciado (13), produzido, por exemplo, por um profissional da rádio, infringe, certo, a máxima de quantidade:

(13) Loc. A: São 10 horas em Portugal e em Chaves.

mas pode querer implicitamente significar o afeto que o locutor sente pela cidade, a afirmação de uma portugalidade provavelmente enjeitada por terceiros, a expressão de um sentimento bairrista, etc.

Parece, pois, evidente, que as infrações a estas regras, as quais se assumem, com efeito, como mecanismos reguladores das trocas verbais, estão claramente ao serviço das implicaturas conversacionais. Tal é o caso, por conseguinte, da regra de qualidade, que impõe ao interlocutor a condição de sinceridade e de veracidade (ser sincero e verídico). Ora, como comprova o enunciado (14):

(14) Loc. A (esposa): Portugal é uma república?
       Loc. B (marido): Duvido.

(15) Loc. A (estudante) Os partidos de esquerda defendem o estado social?
        Loc. B (professor): Deveriam…

(16) Loc. A (filho) O homem político é um animal irracional?
       Loc B (pai): Muitos dão provas de irracionalidade…

Na verdade, em (14), o locutor pode querer ironicamente significar a falta de democraticidade do país, os poderes tentaculares muito pouco condizentes com os princípios republicanos, a alteridade do próprio poder face à crescente corrupção, etc. Já em (15), o locutor entende lavrar uma crítica mais ou menos acerba ao papel que os partidos socialistas desempenham nas sociedades contemporâneas, isto é, à sua incapacidade de regenerar os seus ideias à luz das novas tendências e das aspirações de uma sociedade em desagregação, etc. Por fim, em (16), o locutor alude, porventura, à natureza irracional do homem político, à sua conduta autista e à sua insensibilidade social, entre outras leituras igualmente possíveis...

Ter-se-á, por certo, notado que a infração a esta regra assenta, no essencial, na invalidação de um qualquer pressuposto, a saber, que Portugal (não) é uma república (14), que os partidos de esquerda (não) são hereditários de uma matriz ideológica socialista (15), que o homem político (não) é um ser racional (16), a qual, ao ser colocada em causa, confronta os respetivos alocutários, não com o valor de verdade do enunciado tipo (superveniente do seu valor de uso), mas, antes, com o valor de verdade do enunciado ocorrência (decorrente do seu valor de emprego). Significa isto, em definitivo, que o alocutário é suposto recalcular o enunciado à luz de uma hermenêutica particular, na circunstância, a do seu locutor do momento.

Por outro lado, a máxima de relação (ou de relevância), que, no essencial, instiga o enunciador a ser relevante, isto é, a mobilizar informação pertinente quanto ao discurso anterior é, vezes amiúde, infringida, por exemplo, no discurso judicial. Com efeito, atente-se nos exemplos seguintes:

(17) Loc. A (advogado) Bebe?
       Loc B (testemunha): Sim.
       Loc A: (advogado): A resposta não tem qualquer interesse…

(18) Loc. A (advogado): Se lhe pedisse o nome do assassino, responder-me-ia?
       Loc. B (réu): Sem tibiezas.
       Loc. A (advogado): Em todo o caso prescindo. Obrigado!

Na realidade, não se vê, a priori, qualquer necessidade discursiva em aduzir um ato inicial que, no seu remate, surge voluntariamente truncado. Pura ilusão de ótica, todavia. Na realidade, o princípio obedece, como se perceberá, a uma lógica interna, quer dizer, à construção de um puzzle, cujas regras profundas se encontram implícitas. Dito por outras palavras, parece evidente que (17) cria uma implicatura conversacional, quer a favor, quer contra a imputabilidade da testemunha, tudo dependendo, como é óbvio, das variáveis contextuais. Do mesmo modo, (18) pode servir, por exemplo, para estabelecer uma espécie de compromisso de cavalheiros, a ser atirado, em futuras intervenções, como arma de arremesso, na medida em que o alegado suspeito poderá vir a ser acusado de incoerência, quiçá de mentira, se, porventura, adotar a posteriori um comportamento discurso periclitante nas alegações finais.

Contudo, e sem prejuízo do que acaba de ser dito, a máxima de relevância não é, como se poderia pensar, apanágio do discurso judicial, mas está presente também, nas conversações ordinárias, como atestam exemplos como (19):

(19) Loc. A (hóspede): Posso fumar aqui na sala de jantar?
       Loc. B (anfitrião): Mas claro que podes, caro amigo!
       Loc. A (hóspede): Obrigado, mas agora não me apetece…

(20) Loc. A: Vive só?
       Loc. B: Vivo, sim!
       Loc A: Esqueça! Isso não muda nada entre nós…

De resto, também podemos encontrar este tipo de infração no domínio da literatura, como atesta o exemplo abaixo, na circunstância, uma troca verbal dialógica (e não dialogal) como (21):

(21) A mesa era grande, mas os três [a Lebre de Março, o Chapeleiro e o Dormidongo] estavam todos amontoados a um canto.
– Não há lugar! Não há lugar – gritaram, ao ver Alice aproximar-se.
– Até há lugares a mais – disse Alice, indignada, ao mesmo tempo que se sentava numa grande poltrona, a uma das cabeceiras da mesa.
– Quer um pouco de vinho? – perguntou a Lebre de Março num tom de voz afável.
Alice olhou em volta da mesa e observou que havia apenas chá.
– Não há vinho algum sobre a mesa, tanto quanto me é possível enxergar…
– Não há, de facto.
– Então não é de pessoas educadas, oferecer o que não se tem – observou, indignada, Alice.
– Também não é nada educado da sua parte, sentar-se à mesa, sem ser convidada.


Como se pode reparar, este tipo de intervenções são tudo, menos gratuitas. Com efeito, em causa está, invariavelmente, a construção da imagem [1] do outro, ou dito de outro modo, a construção do ethos do alucutário, pelo que (19) pode, implicitamente, significar a prodigalidade, o liberalismo da personagem, e, mesmo admitindo a natureza truncada do enunciado, tal contribui ainda, por certo, para a construção do ethos das personagens discursivas em cena. Quer isto dizer que mesmo que se impute a irracionalidade da cena dialogal, da responsabilidade exclusiva do locutor, tal ainda se pode – e deve – conceber como uma implicatura. Do mesmo modo, a cena dialogal (20), quer pertença – ao não – ao código amoroso, prende-se, em todo o caso, com a representação das identidades interlocutivas, tanto mais que o dito transforma – vai transformando mutatis mutandis – o ethos dos interlocutores. Por fim, (21) infringe ostensivamente uma regra ritual, na circunstância, a condição do conteúdo proposicional (Cf. http://quiosquedasletras.blogspot.com/2011/11/atos-de-fala.html) relativa ao dom, cujo mecanismo funcional determina que não se pode oferecer aquilo que não se tem. Ora, Alice observa – e muito bem – que, não havendo vinho, não poderia haver enunciação, ou, dito por outras palavras, Alice deixa perceber o esvaziamento do sistema de regras de cortesia, as quais são parte integrante, não apenas do quadro comunicativo que une, contratualmente, os interactantes de uma determinada comunidade, mas também do sistema de obrigações ao qual os interlocutores estão subordinados.

Por último, e no que toca à máxima relativa ao modo, ou seja, à prescrição, segundo a qual importa ser claro, designadamente, quanto à necessidade premente em evitar um discurso longo, ambíguo e desordenado, também podemos, neste caso, descortinar a existências de implicitações. Seja, por exemplo, o enunciado (21):

(21) Loc. A: Eu conheci o amante da minha mãe [–] eh [–] o seu namorado [–] eh o seu novo companheiro, enfim, aquele que viria a ser o meu pai adotivo…

em que o posto (A conta a B que conheceu C) surge, pontualmente entrecortado por autorreparações, as quais dizem muito dos pressupostos que subjazem ao dito, e, de resto, deixam amplamente perceber o código de valores (culturais) a que A e B se encontram axiologicamente subordinados – na circunstância, uma cultura da vergonha

Claro que as autorreparações de (21) constituem, por assim dizer, um subproduto da interação discursiva, e, como tal, são imputáveis, exclusivamente, à gramática da oralidade (neste sentido que, contrariamente à escrita, quando se fala só se consegue corrigir… acrescentando), mas também não deixa de ser verdade que as marcas das tarefas de reformulação (pausas, hesitações, alongamentos vocálicos, falsas partidas, etc.) contribuem, obviamente, para a construção do ethos dos interlocutores em presença, a exemplo, aliás, da psicanálise, cuja metodologia se poderia traduzir, em grande parte, como o lugar do não-dito


4. Conclusão

Face ao exposto, parece evidente que as implicaturas conversacionais estão presentes na produção de discursos que vão para além do dito, o que significa que o locutor diz, vezes amiúde, mais do que aquilo que seria estritamente necessário. E se, apesar de tudo, o discurso remanescente se presta a leituras altamente significativas, isso deve-se, sem dúvida, ao facto de o alocutário tender, invariavelmente, a dotar de sentido os enunciados mais anódinos (mesmo quando, aparentemente, surgem truncados). Tal como determina, aliás, o princípio da cooperação. Mas também porque o locutor espera que o seu alocutário proceda a um cálculo interpretativo sobre o valor de emprego do seu enunciado, pois face à incongruência de certas trocas verbais, o alocutário é, com efeito, levado a formular – de si e para si – uma questão do tipo: mas por que é que o meu interlocutor me está a dizer isto, se eu nem sequer lhe perguntei

Razão acrescida para que percebamos o quão importante se torna o pacto de generosidade, associado à linguagem – e sem o qual a conversação não teria lugar…
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[1] Representação quadripartida das identidades interlocutivas:

















© Manuel Fontão

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