2011/11/23

Análise do corpus [parte 2]

1.6. Eu queria dizer-lhe que as telhas foram c’o c**** (l. 16)

Do ponto de vista da pragmática, existe um tropo ilocutório sempre que se verifique um desfasamento entre os valores ilocutórios aparente e real do enunciado. Nesta perspetiva, um enunciado tal como (1):

(1) Fecha a porta, por favor!

realiza ponto por ponto a instrução dada ao interlocutor, isto é, conforma-se com a realidade circundante. O mesmo não se poderá dizer do enunciado (2), que configura um caso de tropo ilocutório:

(2) Gostaria imenso que fechasses a porta…

Como se constata, a ordem é, aqui, expressa de forma indireta e enfraquecida, na circunstância, sob a forma de satisfação pessoal (que o sujeito enunciador gostaria de ver instanciada). Assim, o ato indireto pode ser glosado como se segue: gostaria imenso de p [em que p = tu fechares a porta]. Note-se, de resto, que o condicional de cortesia /gostaria/ introduz, desde logo, um desfasamento entre o mundo real e o mundo ao qual se alude, razão pela qual este tempo exprime, não raras vezes, a modalidade [1]. Trata-se, segundo a terminologia de Cunha e Cintra, de um futuro do passado, que, ao projetar a ação no passado (e como não acabada), aumenta o efeito de distanciamento (aqui, menos temporal do que social…), diminuindo, deste modo, o valor de base (de ordem).

Ora, por analogia, a Análise do Discurso fala de tropo comunicacional quando existe um desfasamento entre os destinatários aparente e real. Dito por outras palavras, trata-se de um fenómeno que implica uma verdadeira inversão na hierarquia normal dos destinatários, isto é, um caso de figura em que determinado alocutário, em virtude de uma série de indícios da alocução, parece ser o alocutário direto, mas, no fundo, constitui apenas um destinatário secundário, pois que o verdadeiro alocutário é, na realidade, aquele que tem aparentemente o estatuto de alocutário indireto. É justamente o que ocorre nos enunciados seguintes:

(3a) L1 (para si própria): O que é que hei de fazer para o jantar?
(3b) L2 : Um assado?
(4) Quando Dorine finalmente se apercebe que Orgon a proibiu de falar, começa a fingir que está a falar com os seus botões:
Orgon: Então não se faz caso algum daquilo que acabo de dizer?
Dorine: De que é que se está a queixar? Não estou a falar consigo.
Orgon: O que é que estás então a fazer?
Dorine: Estou a falar de mim para mim (Tartufo, II, 2)

Na realidade, em (3a), o locutor L1 coloca, em guisa de comentário, uma questão, fingindo ignorar o seu interlocutor (L2), mas parece evidente que L1 interpela indiretamente L2, pelo que o comentário é, de facto, uma questão endereçada a L2.
O mesmo se passa em (4), na medida em que Dorine, fingindo falar consigo próprio, toma, de facto, Orgon como destinatário da troca verbal, apesar da instrução de não fazer. Assim, Dorine está deliberada e provocatoriamente a infringir a ordem enunciada por Orgon, sem, todavia, poder ser acusada de o fazer… [2]
Outro exemplo, este extraído de Frei Luiz de Sousa de Almeida Garrett, prende-se com a cena do reconhecimento entre D. Madalena e o falso peregrino (que mais não é do que o seu próprio marido, D. João de Portugal, feito prisioneiro na batalha de Alcácer Quibir [3]…). Com efeito, dado que D. João de Portugal sabe que está a falar com a sua (ainda) mulher, encontramo-nos, por conseguinte, em presença de um tropo comunicacional. Aliás, poder-se-á questionar se o tropo comunicacional não será biunívoco, na medida em que D. Madalena, por seu turno, é tomada por um sentimento vago de incerteza e de temor [4]. Já quanto a D. João de Portugal, esse, sabe, com toda a propriedade, que está em presença da sua mulher, que deixara há 21 anos atrás, pelo que o tropo comunicacional (unidirecional) é uma certeza:

Madalena
Sempre há parentes, amigos...

Romeiro
Parentes!... Os mais chegados, os que eu me importava achar... contaram com a minha morte, fizeram a sua [5] felicidade com ela; hão de jurar que me não conhecem.

Madalena
Haverá tão má gente... e tão vil que tal faça?

Romeiro
Necessidade pode muito. Deus lho[5] perdoará se puder!
(…)
Madalena
Pois perdoai, se vos ofendi, amigo.

Romeiro
Não há ofensa verdadeira senão as que se fazem a Deus. Pedi-lhe vós [5] perdão a Ele, que vos [5] não faltará de quê.
Madalena
Não, irmão, não decerto. E Ele terá compaixão de mim.

Romeiro
Terá...

()

Romeiro
As suas palavras, trago-as escritas no coração com as lágrimas de sangue que lhe [5] vi chorar, que muitas vezes me caíram nestas mãos, que me correram por estas faces. Ninguém o [5] consolava senão eu... e Deus! Vede se me esqueceriam as suas [5] palavras.

Jorge
Homem, acabai.

Romeiro
Agora acabo; sofrei, que ele também sofreu muito. Aqui estão as suas palavras: «Ide a D. Madalena de Vilhena, e dizei-lhe [5] que um homem que muito bem lhe [5] quis... aqui [5] está vivo... por seu mal... e daqui não pode sair nem mandar-lhe [5] novas suas de há vinte anos que o [5] trouxeram cativo.»

()
Jorge
() (Chegando ao romeiro)
Conheceis bem esse homem [5], romeiro: não é assim?

Romeiro
Como a mim mesmo [5].

Jorge
Se o [5] vireis... ainda que fora noutros trajes... com menos anos – pintado, digamos - conhecê-lo-eis [5]?

Romeiro
Como se me visse a mim mesmo [5] num espelho.

Jorge
Procurai nestes retratos, e dizei-me se algum deles pode ser.

Romeiro
(sem procurar, e apontando logo para o retrato de D. João)
É aquele[5]  [6]. (idem, 66/71)


Face ao exposto, parece claro que D. João de Portugal fala a D. Madalena [/Deus lho [7] perdoará/, /Pedi-lhe vós perdão a Ele/, /que vos não faltará de quê/] na sua dupla instância enunciadora (como mendigo e como marido), pelo que as formas de tratamento têm como alocutário principal e direto, a sua mulher, D. Madalena. Claro que a forma de tratamento de deferência (dizei-lhe; um homem que muito bem lhe quis; mandar-lhe; Deus lho perdoará [8]) produz um efeito de distanciamento, quer em termos físicos, quer em termos sociais, quer, ainda, em termos afetivos (em sinal, por exemplo, de respeito), e, por isso mesmo, encerra uma leitura ambivalente: /Deus lhe perdoará, a ela, a D. Madalena de Vilhena/ ou /Deus lhe perdoará, minha Senhora, minha querida esposa, etc./. Aliás, o mesmo se poderia avançar acerca dos deícticos, nomeadamente, a expressão /aqui está vivo/, igualmente ambivalente: tanto pode designar o local do cativeiro como a própria casa de D. João de Portugal. Assim, temos uma dupla referência, a saber:


Posto isto, urge fazer a devida articulação com o nosso corpus, na circunstância, com a marca FTA produzida, de forma mais ou menos recorrente, por AN: /(16) Eu queria dizer-lhe que as telhas foram c’o c****/. Com efeito, parece evidente que estamos, também aqui, em presença de um tropo comunicacional, neste sentido que L1 endossa a referida FTA, supostamente, ao seu patrão, mas, no fundo, a sua intenção comunicativa é de outra natureza: AN pretende, antes de mais, submeter a FTA à sua interlocutora direta, que, em boa verdade, não a pode ignorar. Destarte, e tal como Dorine, L1 infringe também uma regra (social), sem poder ser acusado de o fazer, pois pode sempre alegar que o destinatário da FTA em causa consiste, em primeira instância, na pessoa do seu patrão. Do mesmo modo, L1 poderá sempre refugiar-se num ethos social que alegadamente legitima o uso do calão nas mais variadas situações do quotidiano. Tal facto não impede, porém, que se considere essa ambivalência, explicitada no diagrama infra:

Importa referir, de resto, que aceitar como plausível a primeira leitura, em que o referente do pronome pessoal forma do dativo /lhe/ e /o meu patrão/ são correferenciais, não neutraliza, por certo, a FTA, muito embora seja de admitir uma diminuição da sua intensidade.

Em contrapartida, a aceitação da segunda leitura, em que o dativo possui como referência a /assistente/, implica que se tenha de reformular de lés a lés o ethos de L1, assim como o seu programa discursivo inicial: com efeito, uma tal leitura deixa antever um cliente imbuído de má-fé e indecoroso, que pretende, tão-somente, expor a assistente a uma linguagem vernácula e de conotação marcadamente sexual.


1.7. O kolmi (l. 83)

Na realidade, parece ser esta última leitura que prevalece e a prová-lo estão vários indícios: a alteração da voz, o golpe de teatro final (que põe precipitadamente cobro à troca verbal) e, sobretudo, o comentário presente em (83), que deixa transparecer um distanciamento de AN relativamente ao seu dito. Como se perceberá, o comentário implica uma refração da consciência individual, quer dizer, a capacidade de se ver do exterior. Além disso, a interpretação efetuada é malévola, é uma censura, até mesmo uma marca de desprezo relativamente à linguagem utilizada por L2 - o registo técnico e algo hermético.


2. Bibliografia essencial

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Anscombre, J.-C (1995) Théorie des topoï. Paris: Kimé
Bronckart, J.-P (1985) Le Fonctionnment des Discours. Paris: Delachaux & Niestlé
Brown, P et al (1987) Politness. Some universals in language use. Cambridge: C.P.U.
Combettes, B (1992) L’Organisation du Discours. Metz: Université de Metz
Fonseca, J (1998) A Organização e o Funcionamento dos Discursos. Porto: Porto Editora
Fonseca, J (2001) Língua e Discurso. Porto: Porto Editora
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Goffman, E (1973) La mise en scène de la vie quotidienne. Paris: Minuit
Goffman, E (1981) Forms of talk. Philadelphie: University of Pennsylvania Press
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Gollut, J.-D (2008) Le Sens du Style. Lausanne: Antipodes
Grice, P (1975) Syntax and Semantics. New York: Academic Press
Kerbrat-Orecchioni, C (2009) L’Enonciation. Paris: Armand Colin
Kerbrat-Orecchioni, C (2009) Le Discours en interaction. Paris: Armand Colin
Kerbrat-Orecchioni, C (2010) Les Interactions verbales. Paris: Armand Colin
Lakoff, R (1973) The Logic of Politeness. s/l: Papers from the 9th regional meeting of Chicago Linguistic society
Le Bart, C (1998) Le Discours Politique. Paris: PUF
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Maingueneau, D (1984) Genèse du Discours. Liège: Pierre Mardaga Editeur
Searle, J. (1982) Sens et expression. Paris: Minuit
Van Dijk, T (1998) Texto y Contexto. Madrid: Cátedra
Van Dijk, T (1999) Texto y Contexto. Madrid: Visor Libros

Notas de rodapé:

[1] Coteje-se as duas frases infra:
    (A) Depois de ler o documento, compreenderia melhor a sua pretensão [valor temporal].
    (B) Seria ele que me telefonou? [valor modal].
[2] É curioso constatar que, contrariamente à boca, órgão da produção da fala, o ouvido, esse, não possui esfíncter: estamos literalmente condenados a ouvir… mesmo aquilo que não quereríamos.
[3] Madalena, acreditando que o cativeiro do seu marido, D. João de Portugal, o terá conduzido, segundo toda a verosimilhança, à morte, decide, após sete anos de espera, casar com Manuel de Sousa Coutinho…
[4] O sentimento de medo prova, de resto, que D. Madalena de Vilhena nunca havia completamente descartado a possibilidade de D. João de Portugal estar vivo. Daí, as suas tremuras, os seus suores frios, os seus pesadelos noturnos…
[5] Sublinhado da minha responsabilidade.
[6] A alteridade da referência (marcada, no fundo, pela unicidade) coincide apenas com o processo de envelhecimento a que todo o ser humano está obviamente sujeito – inclusive D. João de Portugal…
[7] O pronome pessoal forma do dativo pode – e deve – ser entendido, não apenas como um modo de relato do mendigo (equivalente a uma terceira pessoa do singular), mas também como forma de tratamento dialogal…
[8] Não confundir o tratamento de deferência /Vossa Excelência/ com /Sua Excelência/, que implicam pontos de vista diferentes, sendo que a primeira forma, regra geral, assume uma função apelativa, ao passo que a segunda, normalmente, surge investida de uma função designativa. Em todo o caso, deve ter-se presente que a terceira pessoa do singular assume, em contextos de formalidade extrema, uma função, também ela, dialogal.

Nota técnica: clicar nas imagens para as ler corretamente.

© Manuel Fontão

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